terça-feira, 30 de setembro de 2008

setembro das flores

O mês de setembro transcorreu em meio a mostras semanais: formato bem mais interessante, que atende à processualidade da pesquisa. Explico: antes vínhamos fechando os procedimentos/experimentos semanais no âmbito interno, restrito aos pesquisadores do obscena, com eventuais excursões de um e outro em suas aventuras cênicas. Só abríamos o trabalho para “visitação” pública nas mostras trimestrais: tal ação acabava por ter um aspecto de apresentação.
Com a abertura dos trabalhos de investigação ocorridos durante a semana, ou seja, no dia-a-dia da experimentação, da investigação em ação de cada um de nós, conseguimos, parece-me, atingir o caráter processual inerente à pesquisa que estamos nos propondo a realizar. Falo dos trabalhos públicos que ocorreram nos dias 08, 15, 22 e 29.
Nos dias 15 e 29, realizamos, eu e Lica, mais algumas investigações em torno do experimento que intitulamos cidade das mortas. No dia 15, já registrado em relato anterior, eu e lica nos encontramos mais cedo na casa dela, de onde saímos por volta das cinco e meia da tarde. Como já havíamos experimentado dias à tardinha, início da noite e gostado das possibilidades, optamos por começar o trabalho mais cedo do que o marcado para o encontro dos obscênicos. Nesse dia, novamente trabalhamos na praça da estação e na praça sete. Na praça da estação comecei a filmar a lica, ação logo complementada por Fernando. Também não demorou muito e apareceu a guarda municipal. Evento, tem que ter autorização. Como tem que ter autorização a palavra escrita dano ao patrimônio público pichação em giz. A palavra escrita, o registro, são marcas inegáveis de uma subversão da ordem. São marcas do perigo.
Na praça sete a escrita sujeita ao giz. Aqui, o chão é liso e possível. Praça reformada para descentralizar o centro, esse olho do furacão. Aqui, o fluxo de passantes nos engole e esconde. O centro da cidade é um circo e nele faremos o círculo, percorrendo todos os monumentos dessa praça para terminar no monumento MacDonald´s, com seu imenso M. mulher.
Quem é essa mulher? Não é possível explicar, é necessário construir.
No âmbito desse trabalho, a minha questão principal se relaciona com a prática de dramaturgia que tenho proposto. Dramaturgia do instante. Coincidindo com a investigação dessa escrita no espaço da ação, vários foram os encontros felizes ocorridos nesse mês das flores e tempestades de granizos: as discussões no projeto laboratório acerca do conceito de intervenção urbana, a presença marcante de Antônio Araújo, a tese de José da Costa sobre as escrituras cênico-dramatúrgicas conjugadas; que acabaram por me colocar diversas questões em relação a essa pesquisa: da relação com o espectador/transeunte, das possíveis formas de inscrição textual, do lugar do “dramaturgo”, do texto como elemento material e da dramaturgia como escritura/leitura. E ainda: a mim caberá o todo? Tais questões apareceram mais fortes após a experiência do dia 29.
Savassi. Dia 29 de setembro. Dessa vez, saímos do Sion. Lica propôs experimentar sonoridades e corporalidades animais. A proposta hoje era percorrer as lojas, vitrines. Interagir com o ambiente consumo. Sempre que possível – o chão ali não ajuda muito – deixaríamos algumas mulheres mortas pelo chão. Ali, recuperei novamente a escrita no papel de propaganda. Escrita cartaz.
Mas não nos apressemos. Percorramos o percurso. Avenida Nossa Senhora do Carmo. Os carros em alta velocidade e os pedestres perplexos. Aqui o chão é liso. Bêbados nos tiram a concentração. Esse corpo mulher sacolas atravessa a avenida. Olha ela na passarela.
Esse corpo mulher sacolas perambula pelas lojas do Pátio Savassi. Gravar não pode. Só o celular democrático de uso geral. Todo mundo tem câmera Bluetooth mp3. as caras nas câmeras redes de TV. A câmera caracteriza normaliza o acontecido. Este se torna evento. Teatro arte propaganda marketing novela das oito. Filme. No mundo do mercado o mercado explica tudo? É necessário criar o atrito. O estranhamento. Essa mulher produzirá sonoridades corporalidades animais.
Por que você está vestida assim? E você? Por que a prancha escova progressiva inteligente jeans da moda o roxo bata pode. Por que o sexo forçado marido namorado um tapinha não dói. Homem faz sexo mulher faz amor lipoaspiração drenagem linfática. Tintura. Depilação epilação hidratação cauterização ballayage plástica botox silicone. Não é possível explicar, desculpe o transtorno. Estamos trabalhando para você.
Descemos a rua em atrito com as lojas que encontramos pelo caminho. Drogaria Araújo. A mulher super vaca maravilha rebola reboa seu sino nos corredores vidros prateleiras produtos. A ação é sutil. O som na drogaria. A pose em frente às lojas da Rede. Em frente à Travessa, o diálogo com a estátua da mulher escritora. A prateleira de bonecas da loja de brinquedos. Aqui, as escritas se multiplicam, geradas pelo atrito contato com esses mundos. Materiais. A prateleira rosa. O banquinho branco em frente aos contos de fadas da melissa. A estátua escritora e a boneca de papel da propaganda de desodorante.
Mulher. Uma obra em construção.
Quem é a obra de quem?
Filé. Delícia. Gostosa. Carne de primeira. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca jaca galinha piranha. Mulher melancia. Mulher da vida. Mulher da zona. Mulher da comédia. Mulher à toa. Mulher. A esposa em relação ao marido. Moça que atingiu a puberdade. Samy. 18 aninhos. Morena gostosa. Safada, sapeca como você gosta. 100% completa. Sexo anal total. 69 gostoso. Foto original sem retoque. Gosto de beijar. Amar. Cuidar. Transar. Mesmo sem vontade. Esquecer. Perdoar. Compreender. Sujeitar. Sacrificar. Esquecer. Esquecer. Embalar. Adestrar. Ensinar. Mesmo sem vontade. Educar. Amamentar. Brincar. Parir. Amar. Limpar. Passar. Jogar no rio. Na privada. Na esquina. Na esquina.
Desculpe o transtorno estamos trabalhando para você. Uma obra em construção. Barbies. Pollys. Princess all globe. Bonecas domesticadas pela TV. Hidratantes. Desodorantes. Perfex. Batom. Antiaderente. Drenagem linfática Jet bronze endermologia com arte é diet light in out enterrada menina de 14 anos encontrada morta e estuprada. Metida. Fodida. Arregaçada. Como você gosta.
Cerveja. Boa. Gostosa. Gelada.
Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne.

Nina Caetano

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

cidade das mortas: experimento cênico inacabado número zero.

Ação/situação para uma dramaturga e uma atriz.
Quem é a obra de quem? Mulher: uma obra em construção. Desculpe-nos o transtorno. Estamos trabalhando para você. Não é possível explicar, é necessário construir.

Alguma hora da noite e estamos na Praça Sete.
Uma mulher caminha carregada de sacolas. Seu corpo objetos. Embalagens plásticas metalizadas produtos de limpeza cosméticos mantimentos eletrodomésticos utensílios do lar higiene pessoal familiar.
Uma outra mulher a segue, nas mãos uma embalagem de creme de cabelo da qual saca seu instrumento. Um giz. A dramaturga vai desenhar e escrever continuamente. Narrativas jornalísticas poéticas científicas dicionarescas inventadas documentais. Escritas do momento.
A mulher objetos caminha. Instala seu corpo no espaço. Nos monumentos. Nas ruas. Destaca a arquitetura. Deita-se no chão.
A dramaturga desenha. A Cidade das Mortas. Seus corpos objetos no calçamento da cidade. Os anúncios das prostitutas de Curitiba devem percorrer esses corpos mortos, desenhos a giz no chão. Também devem estar lá o verbete do Aurélio e o inventário de tarefas inúteis. As manchetes e estatísticas. E os desejos de consumo das mulheres domesticadas pela tv. A dramaturga já começa a criar preferências. Ah, adoraria poder deitá-la no asfalto. Desenhá-la em meio aos carros. Parar o trânsito.

Mulher. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mulher da vida. Meretriz. Mulher à toa. Meretriz. Mulher da comédia. Meretriz. Mulher da rua. Meretriz. Mulher da zona. Meretriz. Mulher.
Parir. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Amar. Sujeitar. Sacrificar. Lavar. Passar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Aquecer. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Dar de mamar. Transar. Mesmo sem vontade. Mulheres domesticadas pela tv. Mulheres eletrodomésticas.
A mulher em relação ao marido. Esposa. Rolinhos pregadores talhares bicos de mamadeira chupeta fralda peneira vassoura escova botão linha tampa bombril perfex avental sutiã calcinha meias batons potes hidratantes depiladores filhos planos de saúde férias marido. Feia. Gorda. Velha. Usada. Jogada fora.
A gente pensa que é mulher e é só fêmea. Bichinho de estimação. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca. Galinha. Piranha. Filé. Gostosa. Gostosa. Samy. 20 anos. Morena mestiça. Safada e sapeca. 100% completa. Sexo anal total. Gosto do que faço.
Corpo receita sexo beleza corte cabelo cor unha esmalte batom inverno verão diet light in out Enterrada a jovem de 14 anos encontrada estuprada e morta.
Moda revista filhos baby sitter babá empregada carro seguro colégio celulite flacidez plástica estética beleza jet bronze limpeza de pele completa eletrólise depilação de última geração massagem redutora massagem relaxante drenagem linfática vácuo com endermologia e arte.
Uma mulher é feita de arestas, becos, buracos. De sangue, veias, garganta. Uma mulher é feita de voz, pernas, pensamento e útero.

A mulher objetos atravessa as avenidas, avança para a Praça da Estação. Caminha entre os pontos de ônibus e deita-se na passagem dos pedestres.
A dramaturga tem especial afeição pelas passagens de pedestre. O chão é liso e inclinado. O espaço é razoável e atrapalhamos o trânsito.
Nina Caetano. BHZ. 15 de setembro de 2008.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Aniversário

Hoje ela faz 40 anos. Mas nem parece. Hoje não há festa nem glamour. Vestida de branco, um carrinho de feira lotado de sacolas, balde, bacia, rodo e apetrechos variados, tamancos e uma capa (véu de noiva?) de supermulher vaca maravilha. Ela parte para a praça. Para a rua. Para o trabalho diário. Não, esse não é o seu trabalho. Ou por outra, é. Mas que trabalho é esse?
Partimos as duas para a rua. Ela armada com seus objetos. Eu, com minhas narrativas e meu olhar que registra sua passagem. Saímos de sua casa, na Floresta, e caminhamos pela avenida, carros passam, até o metrô. No caminho, os homens não se agüentam. A roupa branca, a calcinha sob a transparência... ah, os homens!
Descemos e subimos as escadarias do metrô. Eu caminho a certa distância. Alguém ajudará essa mulher? Um senhor oferece para carregar o carrinho. Cavalheirismos...
Saímos na praça da estação. Ainda é dia. Cinco horas. O trânsito é intenso. De transeuntes. De carros. A supermulher noiva maravilha posa junto à fonte. Repito. Centenas de noiva retratam seus dias de glória assim, felizes em praça pública. Ou parques. Ou shoppings. As noivas e seus noivos objetos posam felizes. Antes que seja tarde.
A mulher noiva vaca maravilha empilha embalagens e mais embalagens plásticas. Distribui bandejas e bandejas de isopor pela praça.
“Você é artista plástica?”, pergunta uma mulher que logo começa a trocar confidências com ela. Irmãs na desgraça, solidárias no conselho. “Mas você vai voltar pra ele? Onde é que ele tá?” “Tá lá, namorando a outra.” E as mulheres continuam insistindo em construir seus castelos sozinhas.
Os guardas perguntam: “o que ela está fazendo, o que é isso? Você está com ela?”. Os guardas têm medo do que foge à ordem. E olham de longe.
Aos poucos, lanço alguns registros dessa passagem sobre o cimento da praça. Um dia, quando pequena, sua mãe a levou a uma exposição de bonecas. Bonecas de porcelana, bonecas de louça. Bonecas de plástico. Bonecas de trapo.
Mais adiante, um rol. Parir. Amar. Cuidar. Limpar. Transar. (mesmo sem vontade).
A mulher de 40 muda de roupa. Muda de hábito, persona. Agora ela é outra e empunha balde e rodo como espada e balança. Sempre me lembrará a estátua da justiça nesse longo tubo de malha cinzento. A mulher justiça posta-se ao lado da árvore solitária e juntas compõem um monumento. Em breve, ela recolherá os objetos. Partiremos em nossa caminhada pela cidade das mortas. Ali ela ficará só o tempo da estátua.
Partimos para a caminhada. Para isso, ela troca novamente o hábito. A gente é aquilo que consome. Mulher bacia, mulher vassoura. É bonito vê-la se preparar. Ela coloca seus apetrechos, recolhe seus objetos. Mulher touca na cabeça e boneca de plástico. Mulher de plástico, meias e conformações. Prepara o carrinho de feira, seu companheiro jurado em frente à fonte. Afinal, a mulher precisa ter onde se apoiar. A mulher está em obras, desculpem o transtorno. Estamos trabalhando para você.
A mulher objetos parte. Dessa vez, ela fala. E muito. Subimos a Praça da Estação em direção à Praça Sete. E ela fala. Só se cala ao deitar-se no chão, modelo vivo de uma mulher morta. E sua fala se materializa escrita. Ela me inspira desvios. Fluxos velozes de giz. As mulheres mortas ficam na Estação e partimos. Na Praça Sete, os quatro cantos. Monumentos animados dessa mulher objeto. Outras mulheres objetos. Corpos mortos na paisagem da cidade. Mulheres bichinhos de estimação. Mulheres bonecas em exposição. Mulheres noivas. Mulheres rol. Registros de nossa passagem, marcas do nosso diálogo.
Agora já é tarde e estamos cansadas da lida. Voltar para casa lar reduto do feminino. Ela se desmonta, pega o seu carrinho companheiro de trabalho. Ela parte. Eu vou embora pensando que esse agosto que nos pariu é prenhe.

Nina Caetano

sábado, 19 de julho de 2008

texturas puras da cena


O dramaturgo-encenador é um pintor que dispõe de uma paleta viva; o ator guia a sua mão na escolha das cores vivas, na sua mistura, na sua disposição; depois, penetra ele próprio nessa luz e realiza, em duração, o que o pintor só teria podido conceber no espaço.
(Adolphe Appia)

Textura é o aspecto de uma superfície ou seja, a "pele" de uma forma, que permite identificá-la e distinguí-la de outras formas. As texturas artificiais – a cena é uma delas – resultam da intervenção humana através da utilização de materiais e instrumentos devidamente manipulados. Em música, textura é a qualidade global do som de uma obra musical, mais freqüentemente definida pelo número de vozes na música e na relação entre essas vozes. Uma textura polifônica, em música – como no teatro – contém duas ou mais linhas de voz independentes. Como tecer as diversas vozes presentes na criação?
Aposta do Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil – que, há cada dois anos viabiliza um projeto de montagem a ser apresentado em todos os festivais que o integram (Festival Internacional de Londrina, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, Porto Alegre em Cena, Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte, Cena Contemporânea Festival Internacional de Teatro de Brasília e riocenacontemporanea), Congresso Internacional do Medo, montagem realizada pelo grupo Espanca!, de Minas Gerais, é uma aula de inquietude e rigor cênico. Realizado em processo colaborativo – e obra ainda em processo – a partir do título do poema de Carlos Drummond de Andrade, essa montagem talvez seja o exemplo mais acabado do conceito proposto para essa edição do FIT São José do Rio Preto, expresso por Luis Fernando Ramos no provocativo ensaio que integra a revista do festival. Diz ele: “Pensar a dramaturgia da cena (...) como puro opsis, matéria concreta tornada visível, textura. Nessa hipótese, criar uma cena menos do que tecer um novelo de ações (...) seria constituir uma semântica de superfícies, tessitura de cores e imagens, apresentação de objetos não previamente identificados”.
Precisamente é o que se vê na cena urdida pela insólita artesã diretora dramaturga orquestradora de vozes Grace Passô. No palco, uma mesa de tronco sobre um tablado coberto por um tapete pele de vaca. À direita e à esquerda, ao fundo, dois vasos grandes de planta. À frente, à esquerda, um enorme filtro de água. Ao fundo, à direita, uma cadeira de rodas. Estranha mistura em que a limpeza quase asséptica do cenário contrasta com os elementos naturais que o compõem. Terceiro sinal. As luzes se apagam. No escuro, corpos adentram o palco. Suspensão. Ainda no escuro, eles se movem. Pequenos flashes de luz formam quadros à sua passagem. Suspensão. Algo que já não está ali se instala. O congresso. O tempo da construção. Silêncio. Nada está dado. Os congressistas, cinco, vestidos de branco, se instalam na mesa. Representarão culturas nações diferentes, dado manifesto nas vestimentas que trajam. Índios. Um ocidental. Oriente Médio. Os bailarinos, com quimonos pretos, instalam-se próximos ao filtro. Na cadeira de rodas, a tradutora. Mais que personagens, os seres que transitam em cena são quase metáforas construídas a partir de traços que negam a reprodução mimética. A mulher encoberta, o homem dos animais, o homem das utopias...
Jogando com simultaneidades, superposições de discursos e sistemas, passagens quase em fade, a insólita Grace tece pura dramaturgia da cena. Sao elementos poderosos desse jogo a interessante manipulação do discurso verbal, em que línguas inventadas se misturam ao registro poético do habitante da Ilha do Cedro/Pau Brasil. Interessante jogo de perversão de sentidos entre a palavra expressa e a tradução da palavra. O jogo poético com as palavras, as palestras em outras línguas, desconstroem constroem outros sentidos. Bem como a presença dança dos bailarinos peixes em extinção, outras camadas. E as camadas sentidos significâncias vão sendo construídas – repito, aqui nada é dado – não só pela cena, mas também por nós que, sentados nas cadeiras da platéia, somos chamados a sacrificar nossa passividade confortadora e, ativos espectadores dessa cena múltipla, rugosa, também criar. Aqui, ontem, nós também parimos.
Nina Caetano

quarta-feira, 16 de julho de 2008

como dançar um tango

Seis refletores. Três biombos em cena. Em cena, pouquíssimos objetos que se entrelaçam na tessitura dessa trama tango tragicomédia. Pente. Bule de café. E rosas. As rosas.
Inteligente, sofisticado e preciso, o Teatro Independente, composto por jovens artistas do Rio de Janeiro, nos surpreendeu com o belo trabalho livremente inspirado no universo rodrigueano. De uma maturidade técnica impressionante para a idade de seus realizadores – são todos, entre dramaturgo, diretor e atores, jovens abaixo de 25 anos - O espetáculo Cachorro!, que teve sua última – e quente – apresentação realizada nessa segunda, dia 14, no Sesc de São José do Rio Preto, foi uma experiência apaixonante. O jogo sutil, quase cinematográfico, das sombras (como é cinematográfica a opção dramatúrgica, feita de cortes e edições, sublinhadas pela movimentação dos biombos). A gestualidade marcada dos atores. As pérolas verbais engendradas pelo brilhante dramaturgo Jô Bilac, numa bela dosagem de cotidiano e lirismo. Sem o moralismo de Nelson, o espetáculo texto trama nos mergulha nos meandros viscerais do desejo, sem perder, em absolutamente nada, a potência patética, ridícula, desse triângulo em que se debatem a mulher, o marido e o amante.
Uma voz em off (que logo descobrimos ser de uma cartomante) prenuncia o desfecho. A sombra de Solange, a mulher, escuta. Em breve, o triângulo se formará no palco, prenunciam as sombras. Nesse jogo, não haverá culpados. Só desejo. Corpos. Carne. E sangue. Mas o sangue ainda está distante. Quase nos esquecemos dele, apesar da mórbida obsessão – obsessão não, interesse – de Solange por recortes de jornal que anunciam a tragédia de cada dia. Solange coleciona mulheres mortas. É maravilhosa a cena – que passa do cômico ao patético num gesto – em que Apoprígio, o marido, revela ao amigo, freqüentador assíduo nos horários de almoço e já “de casa”, a morbidez da mulher: ela já beijou o cadáver de uma prostituta. Instaura-se a repetição cômica: o Almeidinha já beijou homem, o primeiro beijo do marido foi em um cabrito. No auge da explosão dos risos, em que Solange e Almeida ensaiam uma cumplicidade, Apoprígio agarra a esposa. Um beijo longo, profundo, cheio de desejo. E vemos o amante traído, ferido. Cadê o amor de conta-gotas do casal? “Eu sou mais corno, porque eu sei e concordo.” As máximas do texto, originais, brincam com a dicção típica de Nelson (vale notar que a palavra Cachorro! não é mencionada uma única vez no texto inteiro). Elas desfilam, entre irônicas e pungentes. “O nosso amor não pega sol”, reclama o amante, num rasgo apaixonado. A mulher, dividida de corpo e alma entre o amor de marido e o amor de amante, lança, no momento culminante da tragédia: “o que você queria? Que eu dançasse frevo?”
Mas... e as rosas? Não posso deixar de mencionar aqui o belíssimo desfecho, prenunciado desde o início deste modesto comentário: enlouquecido de desespero e ciúme, o amante, Almeidinha, escreve uma carta anônima ao amigo, na qual relata tudo. Ele planeja um flagrante, à tarde, na cama do marido. Durante o almoço, Apoprígio, engasgado literalmente com a carta recebida, acossa o casal de amantes (mais uma pérola: “anônimo não mente!”). O marido sai para o trabalho. Ele sabe, diz Solange. Almeidinha pede: morre comigo. Em um belo movimento de tango, o canivete passa da mão do amante para a da mulher, e das mãos da mulher para o ventre dele. Apoprígio retorna à casa. Traz rosas vermelhas e um presente na mão. Palavras cruéis, lancinantes, são trocadas entre o casal. Desesperada, ela o fere com a boca como havia antes ferido o amante com a lâmina (me desculpem a licença poética). Último acorde: lançada em meio às rosas vermelhas, Solange é sufocada pelo sangue pétalas mãos de marido. Ùltima convulsão: ele, o marido, desembrulha o presente que levara. Um bombom. Ele devora. E em mim acontecia um fenômeno raro: eu chorava e ria ao mesmo tempo. E não estava sozinha.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

olhares obscenos

festival internacional de teatro de são josé do rio preto. 11 de julho de 2008. ontem assisti aqueles dois, montagem do luna lunera sobre a obra de caio fernando abreu.
preciso falar sobre eles.
Os atores se aquecem. Seus corpos brincam/dançam no espaço. O público entra. Primeiro sinal: uma carta de Caio. O público entra. Os atores se preparam. Ajudam o público a se acomodar. Revezam-se ao microfone. Pequenas pílulas do que virá depois.
As narrativas permearão todo o trabalho. Os quatro atores revezam-se agora, os corpos em contato, como se revezarão para compor esses dois homens, mas não só. São várias as camadas dessa textura (texto, obra, história?) e instâncias de atuação. Revezam-se personagens, narradores, atores narradores e os atores criadores dessa tessitura. A história de dois homens – almas especiais num deserto de almas – mistura-se ao processo de criação da obra. O processo está ali e se desenvolve aos olhos do espectador. Texturas. A obra não está sozinha. Raul e Saul confundem-se com seus criadores. Confundem-se gostos e almas. Quais discos são de Saul (ou Raul?), quais são do ator? É o pássaro Gardel quem desafina na última nota ou é o ator que empresta seu assovio? Ele desafina na última nota, reparou? É tão bonitinho... isso se viu aqui. Como vimos o encontro no café de todo dia. A rotina da repartição. Os filmes que os unem (são Raul e Saul que gostam de Almodovar ou são os atores?).
O que não vimos, eles nos contam. Escolhem trechos do conto, revelam seus pensamentos/posições sobre os personagens. Dedicam aquele dia a alguém. Eles sempre dedicam. Hoje, aqui em são josé, o espetáculo será dedicado a Roberta Carreri e Torgeir Wethal, companheiros de Eugênio Barba e é ele quem diz: será ação tudo aquilo que atingir o espectador em sua sinestesia ou compreensão. A dramaturgia nada mais é do que isso. Composição de ações e o texto, nada mais que tecido, trama, tessitura. Aquilo que atinge não só o espectador, mas o criador engajado na obra.
No ínicio, um dos atores, Odilon, diz as palavras de Caio: as pessoas reclamam que eu transformo em palavras todo o meu processo mental, “processo mental”, é assim que eles falam, e eu acho engraçado. E que isso assusta as pessoas, que é preciso disfarçar, enganar, mentir, esconder e eu não queria que fosse assim. Queria que as coisas fossem mais simples, mais claras, mais limpas. E o ator diz: “Caio Fernando Abreu, Carta pra além do muro, página 249. Eu não lembro o nome do livro, da edição, mas a página eu nunca esqueci. Página 249”. Lembrei-me disso porque não posso deixar de mencionar o que me parece ser a questão fundamental que move a criação dessa obra: a relação entre as representações sociais e teatrais. Porque aqui tocamos nas máscaras, fingimentos e preconceitos. Tocamos no olhar do outro. Eu disse que o processo se desenvolve aos olhos do espectador. Sob esse olhar obsceno. Como são obscenos os olhos vazados, sem íris nem pupilas que nos olham no final. Desenhos na parede do fundo daquele galpão preparado para receber essa montagem. Olhos vazados, sem expressão nem sentimento. Olhos incapazes de ver para além das imagens que já conhece. Das representações que já domina. Dos rótulos que propaga. E que serão infelizes. Se deus quiser.

terça-feira, 17 de junho de 2008

o julgamento

– Nem bonita, nem feia. Secretária. Eu ficaria muito grata se você, antes do início da sessão, me fizesse um pequeno relato sobre o caso.
– Ela saía muito cedo de casa. Ainda tava escuro. Qualquer dia desses, ela ia ser encontrada morta num beco sujo. Um dia ela tava caminhando e uma coisa aconteceu. Ela viu o sol. Mas um lapso e o escuro. Um cano estourou perto dela. Pausa. Aquilo dava um aperto no coração. Podia ter estourado dentro dela.
(A rua tava vazia. Só uma mulher. Bonita, loura. Loura gelada... )
– Um lapso e ela continua o caminho. Pela cidade deserta. A rua tava vazia. Um homem. Seria o príncipe encantado que iria salvá-la? Amá-la? Casá-la? Matá-la? Desviou, sumiu de vista. Naquela hora, parecia que tinha uma outra cidade na cidade. Outras ruas. Invisíveis. Atravessa a rua. Toma um café na lanchonete da esquina e fuma um cigarro. Ela tinha que bater o cartão. Às oito e ponto. Mas alguma coisa aconteceu. Entre as 06:15, quando despertou, e o momento em que devia pegar o metrô. O metrô estava lotado. Como sempre ela ia em pé. Na ida, todos iam silenciosos. Mas na volta, não. As pessoas falavam sem parar. A senhora já reparou nisso? Já?
(A loura. Aproveitava o metrô lotado para roçar na loura. Gostosa. Ela endurecia o corpo, mas deixava. Ela desce do metrô e ele a perde.)
– Ela desce do metrô e entra no prédio. Primeiro andar. Os corredores. Segundo. Terceiro. Quarto. Cumprimenta as pessoas. Quinto. Sexto. Sétimo. O escritório. No oitavo andar.
– Os fatos. Vamos aos fatos. Vejo que os senhores jurados já ocuparam seus lugares. É um prazer tê-los aqui, tão dispostos a ajudar... Desculpem, mas o crime ainda não foi encontrado. A senhora, por favor, quer se sentar?
– Sim, senhora. Quero. O que foi que eu fiz?
– Nada. A senhora não fez nada. Por favor, comecemos o julgamento. A senhora. Pode sentar-se.
– Sim, senhora. Mas o que foi que eu fiz?
– A senhora ainda não fez nada. Mas vai fazer. Até o fim do julgamento, a senhora vai fazer. Por favor, prossigamos.
– Eu só estava um pouco atrasada. Sempre pegava o metrô às sete e meia. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Às 06:30 ela acaba o banho. Coloca a roupa. Passa o batom. Nem bonita nem feia. Secretária.
– Lembre-se que está num Tribunal do Júri.
– Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela.
– Estou disposta a pesar todos os lados da questão. Mas os fatos. Não a história.
– Desculpa, foi o stress. Eu já disse que ela era frígida?
– Mas disso não consta uma só palavra na acusação. Como devo julgar? Onde está a pasta com a acusação? Preciso dela. Preciso saber quem são os acusados. Como posso saber?
– Ela esquecia as palavras. Não sabia falar com ninguém. Ela era frígida. O que me matou foi o sorriso do meu patrão, doutora!
– Então confessa?
– Eu estava ali. Sem calcinha. Loira, aproximadamente 28 anos. Sozinha. Ninguém reclamou o corpo.
– Qual foi o crime? Ela matou ou foi morta?
– Não sei, doutora. Ainda não aconteceu.
– Vamos aos fatos!
– Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo.
– É fácil dizer isso. Mas eu tenho de conduzir um julgamento. Hoje em dia, não é fácil saber onde está a justiça. Eu já li isso em algum lugar? Vamos aos fatos. Foi um dia normal? A senhora tinha feito seu trabalho direito?
– Sempre pegava o metrô às sete e meia. Mas naquele dia as pessoas me olhavam esquisito. Sempre. Não, aquilo era coisa da cabeça dela. Ela era invisível. Ninguém a via, nunca.
– Então como ele sabia que a senhora estava lá?
– Ela sempre quis ser linda. Ser modelo, atriz. Bailarina. Mas ela era invisível.
– Como ele sabia que a senhora estava lá?
– Pelas minhas ações e pela minha voz. “O senhor deseja alguma coisa?”
(Desejo, sim...)
– De repente eu fiquei zonza! Perdi a noção. No chão, os papéis espalhados. Minha meia rasgada. Eu fiz muito esforço para chegar até aqui e é assim que o senhor me trata?
– Então você confessa? Você sabe muito bem que se pode insultar alguém sem usar a voz. Basta um gesto.
– Sempre pegava o metrô às sete e meia. A blusa branca. De botões. O sapato preto. Tudo organizado. Às 06:30 eu acabo o banho. Digo, ela. Ela coloca a roupa. Digo, eu. Eu gosto de vermelho. Mas passo um batom rosa. Digo, ela. Ela machucou a boca na quina da cama. Eu. Ela. Ela adora passar batom. Ela não é bonita. Mas fica linda de batom.
– Uma ameaça.
– Ele nunca me ameaçou. Ele nunca me olhou. Ele nunca falou comigo. Ele tinha do bom e do melhor. Bebida, só importada. Carro do ano. E uma mesa nova. Caríssima. Era artigo de qualidade. E muito útil. A mesa valia mais do que eu. Digo ela.
– Basta a opressão diária.
– Era artigo de luxo. Ela era um objeto útil. Funcional. Mas ordinário. Substituível. Não tinha sido esculpida, grafada, assinada. Nem desenhada por ninguém. Sua vida não tinha poesia. Ia morrer saltando de uma janela imunda, num cubículo imundo na área do meio dos prédios. O prédio fechado. Sete e meia da noite. E ninguém ia ver.
– A proibição de fazer o que se sente.
– Volta ao escritório. Servimos bem para servirmos sempre! Trabalhava como se fosse o último dia de sua vida. As folhas amarelas são requerimentos. As verdes vão para a contabilidade. Ela cumprimenta a colega: “Obrigada pelas flores!”.
– A proibição de se dizer o que se pensa. Aquilo era seu ou tinha lido isso em algum lugar?
– Vai até o banheiro. Senta-se na privada e digita. Um belo texto. (Vaca...). Um texto imaginário. (Cadela!) Maravilhoso. (Cachorra!) Cheio de palavras que ninguém conhece. (Puta!) Eu devia ganhar o prêmio de funcionária do ano. Ele peidava na minha cara. E eu tinha que rir de suas piadinhas. Alguma coisa aconteceu entre às 06:15, quando acordou e às dezenove e trinta, hora em que devia pegar o metrô. E logo agora que ele tinha falado com ela, sido até simpático.
(Puta!)
– Onde está minha estrutura sólida? Onde está o chão sob meus pés? O que me sustenta? O que eu posso sustentar? Elas se olham durante um longo minuto. Você quer água?
– Sim. Quero.
– Por que me olham assim? Não sou acusada de coisa alguma! Estou pronta a examinar minuciosamente todos os aspectos da questão. Preciso saber qual a decisão que atende os interesses mais altos! Eu sofro de hérnia, não posso ter problemas. Eu tenho família! Que tão olhando? Que tão olhando?

sexta-feira, 13 de junho de 2008

arquitetura

Uma arquitetura é feita de linhas. Retas. Planos traçados... É uma questão de destino. Eu aqui de cima: magnífica. Grande. Dura.
Daqui de cima eu vejo tudo. Os muros. A cidade. Luzes. Prédios. Ruas. Carros. Pessoas. Passam. Passam. As paredes. Buracos no chão.
As pessoas. Dentro de mim.
Algo acontece, escorre pelos canos.
Aqui dentro chove. Cheiro. Cheio de mulheres, mulheres...
Bucetas, bucetas, bucetas...
Dentro de uma
Arquitetura os corpos são conformados nos vazios. E nos cheios. Escrevem um texto que não conseguem ler. Nos corredores. Nas grades, nas celas. No pátio. No cimento. Nas veias. Túneis...
Dentro dela uma mulher esperava pegar dureza daquele lugar torto.
Águas escorrem pelas minhas veias, pingam. Escorre pelos canos.
Por dentro, estou carcomida. Você também. Somos cheias de segredos. Eu e você. Mas a semelhança acaba por aqui. Eu sou feita de areia. Cal. Estruturas metálicas. Nas minhas veias corre ferro.
Um fervilhar...
Corpos são conformados, se conformam nos vazios e nos cheios... Em mim escorre sangue, merda... Veias. Túneis... Eu sou a caixa de gordura da humanidade. Dentro dela uma mulher recitava:
Veias. Véias. Velhas.
Mulheres. Homens. Solidão... Ratos. Ratos. O cheiro daquela urina grudada na pele.
Quanto tempo até o chão? Quanto tempo até meu rosto tocar o chão vermelho?
A carne. Em direção à queda.
Eu grito e ninguém me escuta! Eu estou numa cela que faz parte de um andar que faz parte de um pavilhão que faz parte de uma cadeia de prédios que faz parte de um quarteirão que faz parte de um bairro que faz parte de um distrito que faz parte de uma cidade que faz parte de um estado que faz parte de um país... Eu grito e ninguém me ouve. Eu sou uma formiga. Eu sou uma formiga. Ninguém me escuta. A minha voz não tem som. Sou invisível. Ninguém me vê.
Do alto da torre, o olho passeia e eu invento um altar. Para o deus que fica lá, no alto da torre, vendo a vida passar. Na televisão. Na esquina do mundo. E eu aqui. Sentada nessa cela. Nesse tubo de ensaio. A gente só devia conhecer o que vive.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Sinônimos

Mulher. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Esse mesmo ser humano considerado como parcela da humanidade. A mulher na idade adulta. Adolescente do sexo feminino que atingiu a puberdade. Moça. Cônjuge do sexo feminino. A mulher em relação ao marido. Esposa. Mulher à toa. Mulher da comédia. Mulher da rua. Mulher da vida. Mulher da zona. Mulher. formato par feminino gênero condicional fêmea feminal ovos filhotes cães bezerro vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos vaca mãe mulher vaca fêmea feminino peito limpar útero esquecer parir neutro masculino cadela cachorra vagabunda piranha puta rameira vaca rampeira vadia mulher feminino vaca puta empregada doméstica vadia mulher esposa puta doméstica puta vadia mulher mulher mulher mulher.
Fenda abertura numa superfície ou num objeto fendido ou rachado racha rachadela racha dela greta
Qualquer abertura estreita
Frincha greta abertura estreita que se apresenta mesmo nas rochas devida mulher. Feminino. Referente ao sexo caracterizado pelo ovário nos animais e nas plantas. Feminil. Próprio do sexo feminino femíneo feminal feminizar dar caráter feminino.
Feminismo. Movimento daqueles que preconizam a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a equiparação dos seus direitos aos do homem.
Feminista. Feminizar. Assumir os caracteres de fêmea.




Homem. Qualquer indivíduo pertencente à espécie animal que apresenta maior grau de complexidade na escala evolutiva. Ser humano. A espécie humana. A humanidade. O ser humano com a sua dualidade de corpo e de espírito e as virtudes e fraquezas decorrentes desse estado mortal. Ser humano do sexo masculino varão homem feito adolescente que atingiu a virilidade. Homem dotado das chamadas qualidades viris como coragem força vigor sexual
macho marido ou amante.
Macho. Animal do sexo masculino. Homem. Forte. Robusto. Másculo. Masculino. Próprio do macho. Varonil. Enérgico. Forte. Másculo.
Macheza.
Machismo. Qualidade ação ou modos de macho.
Homem que apresenta os requisitos necessários para um empreendimento o homem indicado para um fim um homem qualquer alguém sujeito camarada cara soldado homem de ação homem de empresa homem de estado homem de letras homem de pulso homem de prol homem público homem de palha homem hora homem rã
homem sanduíche.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

mulher obra

a dramaturga vai escrever e apagar, continuamente.

Linhas gerais temáticas:

Experimento inacabado número Um. Quem é a obra de quem? Mulher: uma obra em construção. Desculpe-nos o transtorno. Estamos trabalhando para você. Não é possível explicar, é necessário construir.

Dentro da vitrine, as atrizes preparam seus objetos. Fora dali, do lado de fora, a cidade. Igreja, hospital. Os transeuntes. São sete horas da noite e estamos na avenida Alfredo Balena.

Inventário de tarefas inúteis. Parir. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Amar. Sujeitar. Sacrificar. Lavar. Passar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Aquecer. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Dar de mamar. Transar. Mesmo sem vontade.
Rolinhos pregadores talhares bicos de mamadeira chupeta fralda peneira vassoura escova botão linha tampa bombril perfex avental sutiã calcinha meias batons potes hidratantes depiladores
Moda revista filhos corpo receita sexo beleza corte cabelo cor unha esmalte batom inverno verão diet light in out baby sitter babá empregada carro seguro colégio celulite flacidez plástica estética beleza jet bronze limpeza de pele completa eletrólise depilação de última geração massagem redutora massagem relaxante drenagem linfática vácuo com endermologia e arte. Sutiã filhos planos de saúde marido férias feia feia. Feia. Gorda. Velha. Usada. Jogada fora.

terça-feira, 27 de maio de 2008

tudo vai ser diferente. Experimento Zero

Oito e meia da manhã. A cidade fervilha. Pessoas cruzam meu caminho. Alguém me conhece? Alguém sabe quem sou? Alguma coisa aconteceu entre a hora que eu saí de casa e a hora que devia pegar o metrô. Eu preciso fumar um cigarro. Eu preciso encontrar quem eu sou.
Hoje saí de casa às seis da manhã como todo dia. Mas hoje ia ser diferente. Tinha que ser diferente, pois mais um dia como aquele ia me matar. Qualquer coisa. Bastava uma alteração de trajeto. Claro que não falo daquelas alterações de trajeto que a gente faz de casa pro trabalho ou do trabalho pra casa. Passar um dia pela rua de baixo, seguir até a avenida principal e dobrar à direita. Ou então ir pela rua de cima e já cair perto do túnel. não.
Ela esperava um milagre.
Alguma coisa que entrasse no seu caminho de maneira irremediável. Nunca mais as mesmas coisas. Lavar. Passar. Amamentar. Aquecer. Embalar. Amar. Sujeitar. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Transar. Mesmo sem vontade. Nunca mais qualquer coisa pra sobreviver mais um pouco.
Ela devia pegar o metrô às seis e vinte. Fechou a porta, desceu as escadas. Cruzou a esquina. Ainda tava escuro. Gostava de ver a cidade naquela hora. Naquela hora, parecia que tinha uma outra cidade na cidade. Invisível. Ela também era invisível. Sempre foi. Ninguém a via, ninguém a escutava.
Eu preciso fumar um cigarro. Eu tinha que bater o cartão às oito em ponto.
Ela atravessa a rua. Toma um café na lanchonete da esquina e fuma um cigarro. A lanchonete tava lotada, mas ninguém me via. Era sempre assim. Era sempre a mesma coisa. Eu estou numa calçada que faz parte de uma rua que faz parte de um quarteirão que faz parte de um bairro que faz parte de uma cidade... Eu grito e ninguém me escuta. Eu espero um milagre.
Até o milagre acontecer eu não podia fazer nada. A não ser comprar uma calcinha de renda vermelha. Tinha visto uma na promoção do dia dos namorados. Torcer pro sexo ser um pouquinho diferente, pois há muito era o mesmo.
Ela já tinha tentado de tudo, até amante. Mas também com ele tudo logo soou programado. As mesmas horas de traição. O mesmo sexo oral anal sempre com ele como nunca fazia com o marido. As sempre mesmas ousadias pequenas. Depois o mesmo sangue correndo calmo nas veias. A mesma casa. Porta. Entrar. Quarenta minutos até os meninos. Tomar banho. Esconder a calcinha. O sorriso vingado. A comida fria na geladeira. Fogão. Cama. Sobremesa. Televisão. Graças a deus a televisão. E o jantar sem perguntas nem respostas. Graças a deus a novela. Sua vida não tinha poesia. Sempre as mesmas coisas. Aquilo dava um aperto no coração.
Mas hoje não. Alguma coisa aconteceu.
O milagre. Um anjo atravessou seu caminho. No chão, os papéis espalhados. A meia calça rasgada. Onde está minha estrutura sólida? Onde está o chão sob os meus pés? O que me sustenta? O que eu posso sustentar? A gente só devia conhecer o que vive. Seu corpo ali no chão. As pessoas passam. Ninguém me vê. E ela que tinha sonhado com um enterro de gala. Cheio de flores e gente chorando. ia ser encontrada morta num beco escuro. Sujo. Ordinário. Alguma coisa tinha se quebrado. E quando uma coisa se quebra não há mais conserto. Aquilo está quebrado para sempre.

domingo, 11 de maio de 2008

mãe de papel

Tece e destece sempre o mesmo dia, com outras histórias. Novas manchetes, notícias de hoje ou de ontem. Inventa um quebra-cabeça na cela de papel. Recorta. Cola. Sempre novas peças. Peças que nunca acabam. Retrato de menino. Foto de propaganda.
Era bonito, não era? Era lindo... Eu gostava de cuidar dele, tinha uma pele tão bonita. Sabe o que a mãe fez? Bateu nele até matar. E ele tinha só dois anos! Como uma mãe pode fazer isso? Dentro dela, o bebê fica ligado por um cordão umbilical. O bebê nasce ligado. Como ela pode jogar fora algo que ainda está dentro dela?
Mas tem mulher, que mesmo sendo mãe, faz o que não pode...
Já imaginou, doutora? Ele tinha só dois anos! Já imaginou o medo dele? Sabe o que ela falou? Que ele chorava demais! Olha a cara dele, doutora. Não parecia rir muito?
Aqui morou uma mãe.
parece uma verdade. Verdade é uma palavra abstrata. A senhora quer os fatos? Objetivos? Eu gostava muito de cuidar dele, ele tinha uma pele tão gostosa. Todo dia eu passava creme, alisava. Penteava o cabelo. Cuidava dele direitinho. E ele gostava, porque ele ria muito. Então eu dava de mamar. E eu tinha que espremer tudo, sabe doutora? Porque ele era muito comilão. Muito. Eu acabei ficando murcha. Murcha. Eu sei de tudo o que aconteceu. Eu pensei: sou a única coisa que ele tem. A senhora tem filhos, doutora?
É aquilo que minha mãe dizia...
Depois que sai de perto da gente, não se tem mais garantia, sabe como é? E não tem como reclamar no procon também não, o procon não aceita reclamação de material danificado! Estranha mãe que fala isso. Mãe tem medo de falar as coisas, mas eu não tenho não. Se a vida é dura mesmo é preciso coragem. Se eu tenho coragem, porque que eu não vou ter coragem de falar aberto?
Nenhuma mãe tem direito de esquecer que é mãe! Nem as que querem. Tem mãe que quer esquecer, mas eles não deixam.
Foi no banho. Era era molinha, sabe? Ela? Era ele ou era ela? E nome? Criança tem nome? Criança tem é braço queimado, abandono. A senhora já reparou que é sempre assim: “Criança espancada... Bebê recém-nascido encontrado abandonado na lata de lixo...” Nunca é José, ou João. É sempre criança. Bebê. Assim, sem nome.
Não consigo me lembrar... Só lembrava da sensação da carne mole. Eu secava ele bem secadinho. Era tão molinho, dava até nojo. Medo. Sei lá.
Não foi imperícia, doutora! Foi falta de atenção! Uma mãe não pode ter um pouco de falta de atenção? Isso é pecado, é crime? É errado? Não lembro de ter feito nada de errado! Eu ficava muito cansada. Dormia muito. E ele tinha só eu para cuidar dele. Tinha hora que eu nem sabia se tava dormindo ou se tava acordada. Nessa hora tudo fica confuso. Não sei o que aconteceu. É nesse momento que tudo fica escuro. Eu queria cuidar dele direitinho.
Mas eu não fiz nada! Só fiz o que tinha que fazer!
Eu não tenho arrependimento. O que foi rasgado não pode colado. E eu pensei que as coisas precisavam ter um fim. Não tem motivo, doutora. As coisas não precisam ter maldade! Eu queria separar as coisas que não podem se perder... As coisas não fazem sentido, são rasgadas. Separadas. Perdem o nexo.
A senhora percebeu que todo mundo quer me ajudar, doutora? Eu fico me perguntando, se eu pedi ajuda pra alguém. Fico me perguntando isso, sabe? Onde que começou essa idéia de que tinha que me ajudar? Essa idéia, de que a gente tem que ajudar o outro dá problema doutora.
Ela quer que as coisas sejam mais firmes, diretas e objetivas. eu acordei e pensei que a única coisa que aquele menino tinha na vida nada a não ser eu, comecei a ficar preocupada porque ele não merecia aquela pessoa só cuidando dele. Tinham muito mais coisas. Muito mais do que eu apenas. Eu não tinha capacidade e eu não gostava o suficiente daquele menino pra que eu pudesse cuidar dele a vida inteira. Só imagina cuidar de uma pessoa a vida inteira sendo que eu não consigo cuidar nem da minha própria pessoa. Eu tento organizar as coisas para que elas não comecem a... a pegar fogo na minha cabeça... Não. Eu não sou doida. Só queria sossego para terminar suas coisas. Às vezes destruía tudo para construir de novo.
Todo mundo queria que ela fosse doida. A mãe. A doutora. Mas ela não era. Era organizada. Queria esquecer o que tinha acontecido lá atrás. Precisava, agora, reconstruir. Entender. Organizar sua cabeça.
A mãe é a culpada de tudo. Se escolher tirar se escolher ter. Comendo bem. mal. diabética hipertensa hipocondríaca. Lavar. Passar. Embalar. Beijar. Aquecer. Dar de mamar. drogada bêbada mulher mãe prostituta. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu piu desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Eu só queria que ele calasse piu piu piu
Mãe. Mãe. Parto natural ou cesárea? Amamentar até pelo menos os seis meses. Formato par feminino gênero condicional fêmea feminal. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Sacrificar. Amar. Esposa. Mulher. sujeitar. perdoar. Esquecer. Eu só queria que ele calasse piu piu piu... Depois que sai de perto da gente, não se tem mais garantia. E não tem como reclamar no procon.
Mulher. Substantivo feminino. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu piu desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Parir. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Amar. Sujeitar. Sacrificar. Lavar. Passar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Aquecer. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Dar de mamar. Gostava de ser mulher... achava que era mulher, mas era fêmea. Bicho de estimação. Gatinha, cachorra, cadela. Vaca. Novilha. Filé. Degustada. Sorvida. Uma mulher é feita de sangue, garganta. Pernas. Voz. Pensamento. Carne. Desejo. Uma mulher é feita. Uma mulher se faz. É preciso acabar com essa voz dentro de mim, sobre mim! Com seus braços, pernas, leis. Sim. Ok. Well. WELL...Orson welles. Bells. Fel. Deus. DEUS. Pai palavras. Ela esquecia as palavras. Não sabia falar com ninguém. Alguém. Todo mundo. Todo poderoso. todo poderoso aqui na terra como no céu. Quero ser cometa, estrela. Mirante.
Constrói sua nave mulher. Sua nave vaca. Sua barca louca, bêbada de objetos intoxicantes: rolinhos pregadores tampas batons talheres fraldas chupetas sutiãs pinças grampos bombril potes escovas. Eles parecem domesticados, mas não se enganem.
É nessa hora que tudo fica escuro. Tudo fica confuso. Não tem mais doutora, não tem mais mamãe aqui! Nenhuma mãe tem direito de esquecer que é mãe... Nem as que querem.

sábado, 10 de maio de 2008

a mãe é a culpada de tudo

Nenhuma mãe tem direito de esquecer que é mãe. Como uma mãe pode fazer isso? Dentro dela, o bebê fica ligado por um cordão umbilical. O bebê nasce ligado. Como ela pode jogar fora algo que ainda está dentro dela? Uma mãe não se esquece. Nem as que querem. Mulher. Mãe. Mãe. Esposa. Mulher.
Lavar. Passar. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Transar. Mesmo sem vontade. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu piu Uma mãe não se cansa nunca. piu piu piu Parto natural ou cesárea? Amamentar até pelo menos os seis meses. Formato par feminino gênero condicional fêmea feminal. Limpar. piu piu piu Amamentar. piu piu piu Trocar. Compreender. Sacrificar. Amar. Depois que sai de perto da gente, não se tem mais garantia. E não tem como reclamar no procon. piu piu piu A mãe é a culpada de tudo. Se ela escolhe tirar se escolher ter. Se come bem se come mal. Se for diabética, hipertensa, hipocondríaca... Se for drogada bêbada prostituta. Mulher mãe puta. Lavar. Passar. Embalar. Beijar. Aquecer. Dar de mamar. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu piu
desculpe a exaustão.
Uma mãe não se cansa nunca.
Eu só queria que ele calasse piu piu piu
A gente acha que é mulher. E é só fêmea.
Bicho de estimação. Gatinha, cachorra, cadela. Vaca. Novilha. Filé. Filé. Gostosa. Gostosa. Prato principal. Degustada. Sorvida. E o preço disso? Caro. Caso. Casório. Casamento. Santa. Santa. Virgem Mãe nas alturas. Hosana. Glorificada. Amada. Desejada. Salve! Salvadora do homem, Redentora de sua imagem. Glória a Deus nas alturas! Homem glória! Pau deus todo poderoso! Glorificar o homem pau é minha glória!
Seria doce pensar assim. Mas não posso. Não quero.
Quero ser uma mulher.
uma mulher com arestas. abismos. Silêncios. E vida.
E vias, veias, sangue.
Uma mulher é feita de sangue, garganta.
Pernas. Voz. Pensamento. Carne. Desejo.
Uma mulher é feita. Uma mulher se faz. Eu vi isso em algum lugar?
É preciso acabar com o julgamento do deus. Com essa voz dentro de mim, sobre mim!
Com seus braços, pernas. Lei, ordem, justiça.
Dicionário. Bíblia. Religião.
Deus quis assim, a mulher é isso, o homem é aquilo.
É preciso acabar com toda a sapiência, com toda a ordem do mundo. Com os invasores de corpos, de almas. Com os médicos, médicos, médicos, psiquiatras, engenheiros, advogados.
Acabar com o controle remoto. O controle remoto artificial. Eu vi isso em algum lugar?
Quero ser cometa, estrela. Eu vi isso em algum lugar?
Mirante. Miranda. Meu nome é Miranda. Eu vi isso em algum lugar?

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A mais bela das artes



Ela saía todo dia muito cedo de casa. Era uma hora escura, perigosa. Um dia, ela ainda ia ser encontrada morta num beco. Ai! O cano parecia ter estourado perto dela. Aquilo dava um aperto no coração. Podia ter estourado dentro dela. Ela tava caminhando e de repente tudo ficou escuro. Alguma coisa aconteceu. Ela tem um lapso.
A rua tava vazia. Só uma mulher. Bonita, loura.
A rua tava vazia. Um homem. Qualquer dia desses ia acabar num beco escuro. Desviou, sumiu de vista. Ela continua o caminho. Pela cidade deserta. Naquela hora, parecia que tinha uma outra cidade na cidade. Outras ruas. Invisíveis. Metrô.
O metrô vazio. Ia ter que sentar no fundo do vagão. Ver a loura de longe.
O metrô estava vazio. Parecia feriado. Ela sempre ia em pé.
A senhora. Pode sentar-se.
E dentro da minha cabeça eu pensava: Gostosa.
Um homem esbarra nela, apesar do metrô vazio.
Resolve segui-la.
Desce do metrô e caminha pelas ruas ainda vazias.
Ela entra na lanchonete. Ele também tem fome.
Cumprimenta a balconista. Toma um café. Fuma um cigarro. Ela vai bater o cartão. Às oito e ponto. Atravessa a rua e entra no prédio.
O prédio.
Primeiro andar. Os corredores. Segundo. Terceiro.
Elevador panorâmico!
Quarto. Cumprimenta as pessoas. Quinto. Sexto. Sétimo. O escritório. No sétimo andar.
Sétimo andar. Cabalístico. Você é minha, loura.
Ele tinha do bom e do melhor. Bebida, só importada. Carro do ano. E uma mesa nova. Caríssima. Era artigo de luxo. E muito útil. A mesa valia mais do que ela. Era artigo de qualidade.
Ela não tinha sido esculpida, grafada, assinada. Nem desenhada por ninguém. Objeto ordinário, útil, funcional. Substituível. Uma vida sem poesia. Ia morrer saltando de uma janela imunda, num cubículo imundo na área do meio dos prédios. O prédio fechado. Sete e meia da noite. Ela ia pular e ninguém ia ver.
Sete e meia da noite. A loura pisa no parapeito. Seu corpo flutua um momento no ar.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

hoje vai ser diferente

hoje vai ser tudo diferente. tinha que ser diferente pois mais um dia como aquele poderia matá-la. qualquer coisa. Bastava um sinal, uma alteração de trajeto. Claro que não falava daquelas alterações de trajeto que fazia de casa para o trabalho ou do trabalho para casa. Passar um dia pela rua de baixo, seguir até a avenida principal e dobrar à direita. Ou ir pela rua de cima e já cair perto do túnel. Ou... Já tinha testado todas. Todas. Iguais.
Ela esperava um milagre.
Alguma coisa que entrasse em seu caminho de maneira irremediável. Nunca mais chegar à escola. Nunca mais bater ponto. Nunca mais o cafezinho. As louras do salão.
Nunca mais voltar para casa. Nunca mais o marido. Nunca mais os filhos. O amante a sogra. A cunhada simpática e aquela que sabia demais. Nunca mais as mesmas coisas.
Nunca mais agarrarse às mínimas diferenças. Uma loja que abrira na esquina. Um sabor novo de chicletes, mentalimão, frutasvermelhas. Nunca mais qualquer coisa para sobreviver. Mais um dia. Sobreviver mais um pouco.
Nunca mais tão pouco.
Viu quem verafisher tá namorando? Aquela ali é doida, não viu que até perdeu a guarda do filho? E a Suzane Richtofen, que cor linda de cabelo? Nem parece que matou a mãe, com aquela cara de inocente. Ainda mais loira! Não disse, pra ser notícia tem que ser loira!
Ela já fora loura. Ruiva. Já teve o cabelo beterraba e até algumas cores mais diferentes, mas nada muito radical. Estava esperando alguma coisa mudar para mudar mesmo seu visual. Quem tinha dinheiro podia vestir qualquer coisa, mas ela não. Tinha emprego. Filho para criar. Até o milagre acontecer não podia fazer nada. A não ser comprar uma calcinha de renda vermelha. Tinha visto um na promoção do dia dos namorados. Com as laterais de tirinhas. Tirinhas de renda. Torcer para o sexo ser um pouquinho diferente pois há muito que era o mesmo.
Ela tinha tentado de tudo, até amante. Mas também com ele logo tudo soou programado. Mesmo o friozinho na barriga, o saber-se sentir-se canalha. O preparar-se em mesmos banhos e perfumes. As mesmas horas da traição. No mesmo quartinho ordinário. O mesmo sexo oral sempre com ele como nunca fazia com o marido. O mesmo sexo anal como ele sempre comia como nunca o marido. As sempre mesmas ousadias pequenas.
Depois o mesmo sangue correndo calmo nas veias. A mesma casa. Mesma chave. Porta. Entrar. Tirar a roupa. Quarenta minutos até os meninos. Tomar banho. O cheiro do outro. Roupa limpa. Esconder a calcinha. O sorriso vingado. A comida fria na geladeira. Fogão. Forno. Sobremesa. Filhos. Banhos. Deveres. Televisão. Graças a deus a televisão. E o jantar sem perguntas. Nem respostas. Graças a deus a novela. Não precisa mais conversar com ninguém. Tá no forno. Já dormiu. Amanhã a gente vê.