quarta-feira, 16 de julho de 2008

como dançar um tango

Seis refletores. Três biombos em cena. Em cena, pouquíssimos objetos que se entrelaçam na tessitura dessa trama tango tragicomédia. Pente. Bule de café. E rosas. As rosas.
Inteligente, sofisticado e preciso, o Teatro Independente, composto por jovens artistas do Rio de Janeiro, nos surpreendeu com o belo trabalho livremente inspirado no universo rodrigueano. De uma maturidade técnica impressionante para a idade de seus realizadores – são todos, entre dramaturgo, diretor e atores, jovens abaixo de 25 anos - O espetáculo Cachorro!, que teve sua última – e quente – apresentação realizada nessa segunda, dia 14, no Sesc de São José do Rio Preto, foi uma experiência apaixonante. O jogo sutil, quase cinematográfico, das sombras (como é cinematográfica a opção dramatúrgica, feita de cortes e edições, sublinhadas pela movimentação dos biombos). A gestualidade marcada dos atores. As pérolas verbais engendradas pelo brilhante dramaturgo Jô Bilac, numa bela dosagem de cotidiano e lirismo. Sem o moralismo de Nelson, o espetáculo texto trama nos mergulha nos meandros viscerais do desejo, sem perder, em absolutamente nada, a potência patética, ridícula, desse triângulo em que se debatem a mulher, o marido e o amante.
Uma voz em off (que logo descobrimos ser de uma cartomante) prenuncia o desfecho. A sombra de Solange, a mulher, escuta. Em breve, o triângulo se formará no palco, prenunciam as sombras. Nesse jogo, não haverá culpados. Só desejo. Corpos. Carne. E sangue. Mas o sangue ainda está distante. Quase nos esquecemos dele, apesar da mórbida obsessão – obsessão não, interesse – de Solange por recortes de jornal que anunciam a tragédia de cada dia. Solange coleciona mulheres mortas. É maravilhosa a cena – que passa do cômico ao patético num gesto – em que Apoprígio, o marido, revela ao amigo, freqüentador assíduo nos horários de almoço e já “de casa”, a morbidez da mulher: ela já beijou o cadáver de uma prostituta. Instaura-se a repetição cômica: o Almeidinha já beijou homem, o primeiro beijo do marido foi em um cabrito. No auge da explosão dos risos, em que Solange e Almeida ensaiam uma cumplicidade, Apoprígio agarra a esposa. Um beijo longo, profundo, cheio de desejo. E vemos o amante traído, ferido. Cadê o amor de conta-gotas do casal? “Eu sou mais corno, porque eu sei e concordo.” As máximas do texto, originais, brincam com a dicção típica de Nelson (vale notar que a palavra Cachorro! não é mencionada uma única vez no texto inteiro). Elas desfilam, entre irônicas e pungentes. “O nosso amor não pega sol”, reclama o amante, num rasgo apaixonado. A mulher, dividida de corpo e alma entre o amor de marido e o amor de amante, lança, no momento culminante da tragédia: “o que você queria? Que eu dançasse frevo?”
Mas... e as rosas? Não posso deixar de mencionar aqui o belíssimo desfecho, prenunciado desde o início deste modesto comentário: enlouquecido de desespero e ciúme, o amante, Almeidinha, escreve uma carta anônima ao amigo, na qual relata tudo. Ele planeja um flagrante, à tarde, na cama do marido. Durante o almoço, Apoprígio, engasgado literalmente com a carta recebida, acossa o casal de amantes (mais uma pérola: “anônimo não mente!”). O marido sai para o trabalho. Ele sabe, diz Solange. Almeidinha pede: morre comigo. Em um belo movimento de tango, o canivete passa da mão do amante para a da mulher, e das mãos da mulher para o ventre dele. Apoprígio retorna à casa. Traz rosas vermelhas e um presente na mão. Palavras cruéis, lancinantes, são trocadas entre o casal. Desesperada, ela o fere com a boca como havia antes ferido o amante com a lâmina (me desculpem a licença poética). Último acorde: lançada em meio às rosas vermelhas, Solange é sufocada pelo sangue pétalas mãos de marido. Ùltima convulsão: ele, o marido, desembrulha o presente que levara. Um bombom. Ele devora. E em mim acontecia um fenômeno raro: eu chorava e ria ao mesmo tempo. E não estava sozinha.

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