terça-feira, 27 de maio de 2008

tudo vai ser diferente. Experimento Zero

Oito e meia da manhã. A cidade fervilha. Pessoas cruzam meu caminho. Alguém me conhece? Alguém sabe quem sou? Alguma coisa aconteceu entre a hora que eu saí de casa e a hora que devia pegar o metrô. Eu preciso fumar um cigarro. Eu preciso encontrar quem eu sou.
Hoje saí de casa às seis da manhã como todo dia. Mas hoje ia ser diferente. Tinha que ser diferente, pois mais um dia como aquele ia me matar. Qualquer coisa. Bastava uma alteração de trajeto. Claro que não falo daquelas alterações de trajeto que a gente faz de casa pro trabalho ou do trabalho pra casa. Passar um dia pela rua de baixo, seguir até a avenida principal e dobrar à direita. Ou então ir pela rua de cima e já cair perto do túnel. não.
Ela esperava um milagre.
Alguma coisa que entrasse no seu caminho de maneira irremediável. Nunca mais as mesmas coisas. Lavar. Passar. Amamentar. Aquecer. Embalar. Amar. Sujeitar. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Transar. Mesmo sem vontade. Nunca mais qualquer coisa pra sobreviver mais um pouco.
Ela devia pegar o metrô às seis e vinte. Fechou a porta, desceu as escadas. Cruzou a esquina. Ainda tava escuro. Gostava de ver a cidade naquela hora. Naquela hora, parecia que tinha uma outra cidade na cidade. Invisível. Ela também era invisível. Sempre foi. Ninguém a via, ninguém a escutava.
Eu preciso fumar um cigarro. Eu tinha que bater o cartão às oito em ponto.
Ela atravessa a rua. Toma um café na lanchonete da esquina e fuma um cigarro. A lanchonete tava lotada, mas ninguém me via. Era sempre assim. Era sempre a mesma coisa. Eu estou numa calçada que faz parte de uma rua que faz parte de um quarteirão que faz parte de um bairro que faz parte de uma cidade... Eu grito e ninguém me escuta. Eu espero um milagre.
Até o milagre acontecer eu não podia fazer nada. A não ser comprar uma calcinha de renda vermelha. Tinha visto uma na promoção do dia dos namorados. Torcer pro sexo ser um pouquinho diferente, pois há muito era o mesmo.
Ela já tinha tentado de tudo, até amante. Mas também com ele tudo logo soou programado. As mesmas horas de traição. O mesmo sexo oral anal sempre com ele como nunca fazia com o marido. As sempre mesmas ousadias pequenas. Depois o mesmo sangue correndo calmo nas veias. A mesma casa. Porta. Entrar. Quarenta minutos até os meninos. Tomar banho. Esconder a calcinha. O sorriso vingado. A comida fria na geladeira. Fogão. Cama. Sobremesa. Televisão. Graças a deus a televisão. E o jantar sem perguntas nem respostas. Graças a deus a novela. Sua vida não tinha poesia. Sempre as mesmas coisas. Aquilo dava um aperto no coração.
Mas hoje não. Alguma coisa aconteceu.
O milagre. Um anjo atravessou seu caminho. No chão, os papéis espalhados. A meia calça rasgada. Onde está minha estrutura sólida? Onde está o chão sob os meus pés? O que me sustenta? O que eu posso sustentar? A gente só devia conhecer o que vive. Seu corpo ali no chão. As pessoas passam. Ninguém me vê. E ela que tinha sonhado com um enterro de gala. Cheio de flores e gente chorando. ia ser encontrada morta num beco escuro. Sujo. Ordinário. Alguma coisa tinha se quebrado. E quando uma coisa se quebra não há mais conserto. Aquilo está quebrado para sempre.

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