domingo, 11 de maio de 2008

mãe de papel

Tece e destece sempre o mesmo dia, com outras histórias. Novas manchetes, notícias de hoje ou de ontem. Inventa um quebra-cabeça na cela de papel. Recorta. Cola. Sempre novas peças. Peças que nunca acabam. Retrato de menino. Foto de propaganda.
Era bonito, não era? Era lindo... Eu gostava de cuidar dele, tinha uma pele tão bonita. Sabe o que a mãe fez? Bateu nele até matar. E ele tinha só dois anos! Como uma mãe pode fazer isso? Dentro dela, o bebê fica ligado por um cordão umbilical. O bebê nasce ligado. Como ela pode jogar fora algo que ainda está dentro dela?
Mas tem mulher, que mesmo sendo mãe, faz o que não pode...
Já imaginou, doutora? Ele tinha só dois anos! Já imaginou o medo dele? Sabe o que ela falou? Que ele chorava demais! Olha a cara dele, doutora. Não parecia rir muito?
Aqui morou uma mãe.
parece uma verdade. Verdade é uma palavra abstrata. A senhora quer os fatos? Objetivos? Eu gostava muito de cuidar dele, ele tinha uma pele tão gostosa. Todo dia eu passava creme, alisava. Penteava o cabelo. Cuidava dele direitinho. E ele gostava, porque ele ria muito. Então eu dava de mamar. E eu tinha que espremer tudo, sabe doutora? Porque ele era muito comilão. Muito. Eu acabei ficando murcha. Murcha. Eu sei de tudo o que aconteceu. Eu pensei: sou a única coisa que ele tem. A senhora tem filhos, doutora?
É aquilo que minha mãe dizia...
Depois que sai de perto da gente, não se tem mais garantia, sabe como é? E não tem como reclamar no procon também não, o procon não aceita reclamação de material danificado! Estranha mãe que fala isso. Mãe tem medo de falar as coisas, mas eu não tenho não. Se a vida é dura mesmo é preciso coragem. Se eu tenho coragem, porque que eu não vou ter coragem de falar aberto?
Nenhuma mãe tem direito de esquecer que é mãe! Nem as que querem. Tem mãe que quer esquecer, mas eles não deixam.
Foi no banho. Era era molinha, sabe? Ela? Era ele ou era ela? E nome? Criança tem nome? Criança tem é braço queimado, abandono. A senhora já reparou que é sempre assim: “Criança espancada... Bebê recém-nascido encontrado abandonado na lata de lixo...” Nunca é José, ou João. É sempre criança. Bebê. Assim, sem nome.
Não consigo me lembrar... Só lembrava da sensação da carne mole. Eu secava ele bem secadinho. Era tão molinho, dava até nojo. Medo. Sei lá.
Não foi imperícia, doutora! Foi falta de atenção! Uma mãe não pode ter um pouco de falta de atenção? Isso é pecado, é crime? É errado? Não lembro de ter feito nada de errado! Eu ficava muito cansada. Dormia muito. E ele tinha só eu para cuidar dele. Tinha hora que eu nem sabia se tava dormindo ou se tava acordada. Nessa hora tudo fica confuso. Não sei o que aconteceu. É nesse momento que tudo fica escuro. Eu queria cuidar dele direitinho.
Mas eu não fiz nada! Só fiz o que tinha que fazer!
Eu não tenho arrependimento. O que foi rasgado não pode colado. E eu pensei que as coisas precisavam ter um fim. Não tem motivo, doutora. As coisas não precisam ter maldade! Eu queria separar as coisas que não podem se perder... As coisas não fazem sentido, são rasgadas. Separadas. Perdem o nexo.
A senhora percebeu que todo mundo quer me ajudar, doutora? Eu fico me perguntando, se eu pedi ajuda pra alguém. Fico me perguntando isso, sabe? Onde que começou essa idéia de que tinha que me ajudar? Essa idéia, de que a gente tem que ajudar o outro dá problema doutora.
Ela quer que as coisas sejam mais firmes, diretas e objetivas. eu acordei e pensei que a única coisa que aquele menino tinha na vida nada a não ser eu, comecei a ficar preocupada porque ele não merecia aquela pessoa só cuidando dele. Tinham muito mais coisas. Muito mais do que eu apenas. Eu não tinha capacidade e eu não gostava o suficiente daquele menino pra que eu pudesse cuidar dele a vida inteira. Só imagina cuidar de uma pessoa a vida inteira sendo que eu não consigo cuidar nem da minha própria pessoa. Eu tento organizar as coisas para que elas não comecem a... a pegar fogo na minha cabeça... Não. Eu não sou doida. Só queria sossego para terminar suas coisas. Às vezes destruía tudo para construir de novo.
Todo mundo queria que ela fosse doida. A mãe. A doutora. Mas ela não era. Era organizada. Queria esquecer o que tinha acontecido lá atrás. Precisava, agora, reconstruir. Entender. Organizar sua cabeça.
A mãe é a culpada de tudo. Se escolher tirar se escolher ter. Comendo bem. mal. diabética hipertensa hipocondríaca. Lavar. Passar. Embalar. Beijar. Aquecer. Dar de mamar. drogada bêbada mulher mãe prostituta. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu piu desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Eu só queria que ele calasse piu piu piu
Mãe. Mãe. Parto natural ou cesárea? Amamentar até pelo menos os seis meses. Formato par feminino gênero condicional fêmea feminal. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Sacrificar. Amar. Esposa. Mulher. sujeitar. perdoar. Esquecer. Eu só queria que ele calasse piu piu piu... Depois que sai de perto da gente, não se tem mais garantia. E não tem como reclamar no procon.
Mulher. Substantivo feminino. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu piu desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Parir. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Amar. Sujeitar. Sacrificar. Lavar. Passar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Aquecer. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Dar de mamar. Gostava de ser mulher... achava que era mulher, mas era fêmea. Bicho de estimação. Gatinha, cachorra, cadela. Vaca. Novilha. Filé. Degustada. Sorvida. Uma mulher é feita de sangue, garganta. Pernas. Voz. Pensamento. Carne. Desejo. Uma mulher é feita. Uma mulher se faz. É preciso acabar com essa voz dentro de mim, sobre mim! Com seus braços, pernas, leis. Sim. Ok. Well. WELL...Orson welles. Bells. Fel. Deus. DEUS. Pai palavras. Ela esquecia as palavras. Não sabia falar com ninguém. Alguém. Todo mundo. Todo poderoso. todo poderoso aqui na terra como no céu. Quero ser cometa, estrela. Mirante.
Constrói sua nave mulher. Sua nave vaca. Sua barca louca, bêbada de objetos intoxicantes: rolinhos pregadores tampas batons talheres fraldas chupetas sutiãs pinças grampos bombril potes escovas. Eles parecem domesticados, mas não se enganem.
É nessa hora que tudo fica escuro. Tudo fica confuso. Não tem mais doutora, não tem mais mamãe aqui! Nenhuma mãe tem direito de esquecer que é mãe... Nem as que querem.

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