sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Um soco no estômago

Leitura crítica de Borboletas de Sol de Asas Magoadas, espetáculo assistido durante o FENATA. 
Ponta Grossa/PR

“Se a pessoa está tendo muito problema com a sexualidade do outro é porque alguma coisa não está bem resolvida dentro dela” (travesti Bety).

            O Brasil é campeão mundial de crimes contra LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais). Contra 35 assassinatos ocorridos no México (segundo lugar nas estatísticas) e 25 ocorridos nos EUA (terceiro lugar), no ano passado, são aproximadamente 200 crimes por ano (cerca de um assassinato a cada dois dias) no país. Destes, 37% são contra travestis. Ainda segundo o levantamento, realizado pelo GGB (Grupo Gay da Bahia), os estados mais homofóbicos são a Bahia e o Paraná que, só no ano passado, contabilizaram 25 mortes cada um. No Paraná, a maioria das mortes é de travestis, sendo Curitiba a metrópole na qual mais homossexuais foram assassinados no Brasil.
            Construído a partir de uma pesquisa de campo realizada com travestis nas ruas de Porto Alegre/RS, o espetáculo Borboletas de Sol de Asas Magoadas, com concepção, criação e magnífica atuação de Evelyn Ligocki (que divide a direção com Celina Alcântara), trata, justamente, do universo de brilho e preconceito, riso e desprezo, violência e solidão em que elas vivem.
O espetáculo começa ainda no saguão de entrada, onde Bety, nossa anfitriã, nos recepciona e nos convida a entrar em sua “casa”. É impressionante a mímesis da atriz que, sendo mulher, representa um homem que quer ser mulher, superlativa em sua feminilidade. Seus gestos, posturas, linguajar e inflexões vocais, minuciosamente construídos, criam um jogo de ambigüidade (é homem ou é mulher?) que me parece absolutamente necessário para o que será tratado em cena.
            Com o público já acomodado, Bety transita pela platéia e chama alguns espectadores para se sentarem no palco, junto a ela. Ela brinca, usa e abusa dos trejeitos típicos das travestis, do jogo de cabelo, do vocabulário. Captada a simpatia da platéia, ela vai, aos poucos, revelando-nos o seu dia-a-dia, no qual se misturam a alegria e a dor: seus truques, mascaramentos e pequenas tragédias, como o assassinato da amiga, sua “mãe de quadra”. Bety expõe seu corpo, chora, dá risada, relata as agressões diárias que sofre e o seu trabalho na prostituição, aproximando-nos da humanidade desses seres que, em geral, são vistos (e tratados) como aberrações.
            No entanto, ao assistir ao trabalho ontem, no Cine-Teatro Ópera, fiquei com a nítida impressão de que ele foi concebido para outro tipo de espaço, que permitisse ao público, de fato, adentrar a intimidade da travesti, estar em sua casa. Nesse sentido, a estrutura de palco italiano – que, nesse caso, parecia exigir outra forma de dramaturgia – prejudica a cumplicidade que a atriz, por meio de uma relação direta, olho no olho, constrói com o espectador. Este, em diversos momentos, se afasta dos fatos narrados em cena: foi especialmente perceptível o momento em que Bety, ao sair para o trabalho – a atriz se dirige para o fundo do palco, no qual simula uma rua da zona de prostituição – é cuspida, depois espancada e estuprada. A ação toda é construída a partir das reações da atriz, que simula as agressões com o próprio corpo. A cena, embora forte e violenta, provocou risadas na platéia, talvez pela dificuldade de construí-la, naquele espaço, com verossimilhança. Talvez pela dificuldade de construí-la com verossimilhança, à vista do espectador.
            Em seguida, machucada no corpo e na alma, Bety retorna à sua casa e este me parece ser o momento chave do espetáculo, no qual, por meio do desabafo da travesti, a atriz Evelyn pode colocar em cena o seu posicionamento e escancarar a hipocrisia moral e social na qual vivemos mergulhados. Momento precioso em que, devido ao patético da ação – na qual se misturam o sofrimento e a revolta, o choro pungente e o espanto – esse desmascaramento encontra eco, pela contundência de seu discurso, em nossa mais profunda humanidade.  

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Em busca do deus

Leitura crítica de Agda
(espetáculo apresentado durante o FENATA, em Ponta Grossa)

“E outras vezes, Potente Implacável Senhor, que teria sido melhor não morrer e ficar fiando o destino das gentes e Agda-daninha às noites só cantando e dançando, que é verdade que sei melhor cantar e dançar do que morrer.”

O cenário é simples: três painéis, no fundo do palco, delicadamente iluminados. Vozes começam a soar, em sussurros ininteligíveis, ganidos de cães. Corpos se movimentam no escuro, em gestualidade animal. Assim começa Agda, espetáculo que é fruto da parceria, iniciada em 2001, entre a Boa Companhia e o Grupo Matula Teatro (Campinas/SP). Como no conto homônimo de Hilda Hilst – no qual o espetáculo é inspirado – Agda é também o nome da personagem central, mulher que, por romper com os tabus da comunidade em que vive, atrai sobre si todo o ressentimento, fúria e crueldade de seus habitantes.
Misturando elementos do teatro e da dança, Melissa Lopes, Aldiane Dala Costa e Veronica Fabrini, as três atrizes em cena, personificam não só Agda, mas também as vozes da aldeia, principalmente dos três homens – Kalau, Celônio e Orto – que são seus amantes. E são justamente as vozes dos três que ouvimos soar, já no início do espetáculo, como percepções supersticiosas da mulher: Agda-cadela, Agda-daninha, Agda-lacraia. Agda, aquela que aparece, para cada um deles, como distinta e sempre outra. Agda inapreensível. Como Orto diz, nesse primeiro diálogo que soa em off, enquanto as três atrizes-bailarinas se movimentam, construindo e desconstruindo, com seus corpos e vozes, imagens que remetem à animalidade dessa mulher, maldita por todos: “muita coisa junta vive dentro de Agda e a nossa parte é nada”.

A partir do que poderíamos chamar de uma dramaturgia do corpo, o espetáculo constrói com delicadeza a oposição entre Agda – mulher em busca da transcendência, angustiada entre suas dimensões sagrada e profana – e o olhar, violento e opressor, que a comunidade lança sobre ela. Para isso, coopera, além do ótimo desempenho das três atrizes, a manipulação do figurino, assinado por Juliana Pfeifer e Sandra Pestana. Simples, belo e versátil, encontra especial destaque nas saias que, se transformando em calças, vão compor, juntamente com paletós e punhais, as figuras masculinas. Ao serem manipuladas pelas atrizes, elas se tornam véus, mortalhas, extensões do corpo de Agda. Ao final do espetáculo, às saias e paletós, as atrizes acrescem panos vermelhos – que lembram, em chave metonímica, trajes eclesiásticos – para compor os diversos tipos que habitam a aldeia e que se dirigem ao público, como promotores, juízes e carrascos, na condenação da mulher da qual não conseguem suportar a singularidade.
Essa mesma delicadeza está presente no movimento quase coreográfico da cena – e aqui quero destacar um dos momentos mais belos de Agda: o insólito tango dançado pelos homens que relembram, com raiva e desejo, sua amante – bem como na inspirada trilha sonora, composta por Mauro Braga e Silas de Oliveira, e no trabalho vocal das atrizes, principalmente de Aldiane Dala Costa que, em alguns momentos, consegue produzir suspensões poéticas, em outros, uma musicalidade quase encantatória.
O texto, aliás, merece especial destaque: a potente transcriação dramatúrgica, a cargo de Moacir Ferraz (que também assina a direção), não só conserva a natureza híbrida do conto de Hilda Hilst – no qual se mesclam as instâncias dramática, narrativa e lírica – como, ainda, mantém toda a intensidade de sua escrita, ganhando preciosas nuances no jogo entre a poesia e os corpos que transitam entre as energias masculina e feminina, entre o humano e o animal, entre o profano e o divino.