sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

sem juízo I

Como uma mãe pode fazer isso? Dentro dela, o bebê fica ligado por um cordão umbilical. O bebê nasce ligado. Como ela pode jogar fora algo que ainda está dentro dela? Nenhuma mãe tem direito de esquecer que é mãe! Nem as que querem. Mulher: ser humano do sexo feminino capaz de conceber e gerar outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mãe. Ser égua parideira. vaca cadela cachorra gata galinha piu piu piu pintinho! desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Eu só queria que ele calasse piu piu psiu psiu psiu Parto natural ou cesárea? Amamentar até pelo menos os seis meses. Formato par gênero condicional fêmea feminina. Limpar . Amamentar. Trocar. Compreender. Sacrificar. Padecer no Paraíso. Amar acima de tudo. de si mesma. Cuidar. Educar. Onde é que tá a mãe desse menino? Depois que sai de perto da gente, não tem mais garantia. Pode estragar a qualquer momento. Estragar tudo o que a gente fez, todo o sacrifício! E não tem como reclamar no procon. É tudo culpa da mãe! Todo mundo sabe disso. A mãe é culpada de tudo. Se ela escolhe tirar se escolher ter. Se come bem se come mal. Se for diabética, hipertensa, hipocondríaca gorda. se bebe se fuma um cigarrinho. Tinha hora que dava vontade de enfiar de volta no útero... Eu sei que é estranho falar isso. As mães têm medo de dizer as coisas. mas eu não. Minha vida sempre foi dura mesmo eu, eu tenho coragem de falar, e se eu tenho coragem de dizer as coisas, porque que eu não vou ter coragem de falar? o que eu penso.É isso. Tinha hora que eu ficava muito cansada. E só queria enfiar ele de volta no útero. Pra ele me deixar em paz.
Se não queria parir não devia ter aberto as pernas, vadia. Abortista, assassina. Lixo, escória da humanidade. Puta.
Mãe. Lavar . Passar. Embalar. Beijar. Aquecer. Dar de mamar. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Eu só queria que ele psiu psiu psiu calasse que ele psiu psiu psiu dormisse.
trecho de Mãe de Papel, sem juízo I - estudos para um roteiro (improviso de Lissandra Guimarães e dramaturgia de Nina Caetano).

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

AMOLA-SE

No fundo da cena, soava o pregão distante.
Cada vez mais distante, soava no fundo do ouvido:
Amolador! (Dizia amolador e alongava cada vogal.) Amola faca alicate tesoura! Amola-a-dor...
O homem sentado no quarto, na beira da cama, discordava:
Nem precisa amolar a dor, que essa já corta afiada.
O homem perguntava:
De quantas facas preciso pra fatiar seu coração, hein? Pra deixá-lo em farrapo como o meu?
Com qual tesoura alicate punhal fatiar seu amor fingido pra poder comê-lo em pedaços?
Ele sentia o coração ficar quente quente no peito. E a cabeça quente quente. E o sangue ferver. Ele pensava que era amor, mas não era. Era raiva. Pensava que era o brilho cego de paixão. Mas era ódio e faca amolada.
Ela, o corpo estirado no chão, não respondeu. Agora ela sabia do ódio que ele tinha. O ódio que ela, mulher, já pressentia.
Ele insistiu:
Era isso que você queria, não era? Quem mandou me largar? Quem mandou me desprezar, me humilhar? Sou homem, não sou moleque não. Sou homem, você vai aprender.
Ela, o corpo estirado no chão, não respondeu. Parecia birra. Mas não era. Era boca rasgada, peito aberto e 42 facadas. Só por que ela não o amava, não o queria? Morta, ela pensava: o que ela queria mesmo era viver, era não ser obrigada.
Ele insistiu:
Se não vai mais ser minha, não vai ser de mais ninguém.
Ele nem pensou que podia deixar sua luz brilhar e ser muito tranquilo.
Deixar o seu amor viver e ser muito tranquilo.