quinta-feira, 27 de setembro de 2012

eu aborto, tu abortas, somos todas clandestinas


Eu fiz um aborto. Já mãe, com a minha vida resolvida e sem desejo nenhum de ter outro filho e "começar tudo de novo", resolvi abortar. E como foi difícil! Não dentro de mim. A decisão estava tomada e eu estava tranqüila, apesar dos sentimentos de culpa e sensações supersticiosas (resquícios de minha criação católica) de que eu seria punida. Sensações que eram intensificadas na medida em que eu percebia como era difícil fazer um aborto em um país no qual ele não é legalizado. Não conseguia referências médicas - quando as conseguia, os médicos não mais atuavam pelo risco que isso implicava - e não consegui acesso aos remédios que possibilitariam realizar um aborto medicinal. Quando obtinha informações, os remédios eram caríssimos e a fonte não confiável (corria o risco de comprar os remédios, tomá-los e a gravidez não ser interrompida). Percebi o quanto a ilegalidade do procedimento favorece o nascimento de um mercado que se aproveita da fragilidade da situação em que as mulheres se encontram, de um mercado que explora o desespero alheio.
Por fim, com uma ONG internacional, consegui o oferecimento dos medicamentos, em um valor razoável (cobrado para que outras mulheres, sem condição financeiras, possam recebê-los de graça)
Nesse meio tempo ficava o tempo inteiro imaginando se eu não tivesse as condições que eu tinha: financeiras, emocionais, familiares. Eu estaria perdida! Sozinha, sem opções e sem ajuda e com muito medo: da punição legal, do risco físico concreto e confrontada com a possibidade de ter que criar um filho indesejado. UM FILHO INDESEJADO. Quando, de fato, as coisas poderiam (e deveriam) ocorrer de modo muito mais simples e seguro.
Finalmente, os medicamentos chegaram no último minuto do segundo tempo e realizei o aborto: este foi fisicamente muito tranquilo. Ou seja, se houvesse descriminalização do aborto, o processo seria bastante simples: sem medo, sem culpa e sem risco. Não para mim. Mas para as milhares de mulheres que engravidam sem querer e que não têm condições ou não querem levar a gravidez a termo. Está na hora de acabar com essa hipocrisia social: os abortos acontecem, independente da ilegalidade. Esta só favorece a exploração da situação de desespero em que as mulheres se encontram. Só favorece o mercado negro dos medicamentos. Só favorece o risco e a morte de milhares de mulheres, todos os anos.


As mulheres "entre 20 e 29 anos, em união estável, com até oito anos de estudo, trabalhadoras, católicas e com pelo menos um filho" formam o maior grupo que pratica aborto no país,segundo estudo realizado pela Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Ainda segundo a pesquisa, entre "70,8% e 90,5% de quem opta pelo procedimento já tem filhos".
 - Mais de 1 milhão de gestações foram interrompidas em 2005.

- Pelo menos 3,7 milhões de brasileiras entre 15 e 49 anos realizaram aborto. Ou seja, 7,2% das mulheres em idade reprodutiva. Menos da metade chega ao Sistema Único de Saúde (SUS).

- De 51% a 82% dos abortos são realizados por mulheres entre 20 e 29 anos. Adolescentes respondem por 7% a 9% das estatísticas.

- Somente 2,5% das interrupções de gravidez ocorreram em um contexto de relações eventuais.

- Mulheres que vivenciam relações estabelecidas (tem marido, companheiro ou namorado) responde pela maior parte dos abortos: 70% dos casos.

- Entre 70,8% e 90,5% de quem decide pelo procedimento já possui filhos.

- Mais de 50% das mulheres que abortaram nas regiões Sul e Sudeste usavam algum método anticoncepcional, principalmente pílulas. No Nordeste, essa porcentagem oscila entre 34% e 38,9%.

- Das adolescentes, entre 60% e 83,7% delas não pretendiam engravidar, e 73% cogitaram a interrupção da gestação, sendo que 12,7% a 40% das garotas tentaram abortar. Entre aquelas que consumaram o ato, 25% voltaram a esperar um filho.

- A maior parte das mulheres que fizeram aborto se declarara católica, com 51% a 82% de prevalência, seguida pela que professa a fé espírita, com 4,5% a 19,2%. Em último lugar estão as evangélicas - entre 2,6% e 12,2%.

- De 50,4% a 84,6% das mulheres que cessaram a gestação utilizaram o medicamento Cytotec. Entre as adolescentes, o método também aparece com destaque: mais de 50% afirmaram tomar o Cytotec ou ingerir algum tipo de chá.

- Nos anos 2000, um estudo entre jovens de 18 a 24 anos mostrou que renda familiar e escolaridade foram fatores associados à indução do aborto na primeira gravidez: quanto maior a renda e a escolaridade, maiores as chances de a primeira gravidez resultar em um aborto. 
Fonte da UFPel: relatório Aborto e Saúde Pública: 20 anos de Pesquisas no Brasil.

Estudos do Instituto Alan Guttmacher (IAG, em www.agi-usa.org) informam que nos países em desenvolvimento ocorrem 182 milhões de gestações anuais. Estima-se que 36% dessas gestações não foram planejadas, entre as quais 20% terminam em aborto.

A América Latina e o Caribe contribuem significativamente para estes números. As estimativas feitas pelo IAG apontam que, a cada ano, são realizados cerca de 4 milhões de abortos clandestinos e inseguros nas duas regiões.

A Organização Mundial de Saúde divulgou dado sobre mortes maternas relacionadas ao aborto. Segundo a OMS, 21% das mortes (cerca de 6 mil/ano) relacionadas com a gravidez, o parto e o pós-parto, nesses países, têm como causa as complicações do aborto realizado de forma insegura.

Segundo o documento Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, publicado pelo Ministério da Saúde em março de 2004, no Brasil 31% de gestações terminam em aborto. Anualmente, ocorrem no país aproximadamente 1,4 milhão de abortamentos, entre espontâneos e inseguros, com uma taxa de 3,7 abortos para 100 mulheres de 15 a 49 anos.
 Segundo a ANDI (Agência de Notícia dos Direitos da Infância), a cada dia cerca de 140 meninas têm a gravidez interrompida. A cada hora, seis adolescentes entram em processo de abortamento.

Ainda segundo o documento, em 2002 foram registrados 53,77 óbitos maternos por 100 mil nascidos vivos, devido a complicações na gestação, no parto ou no puerpério (período de 42 dias após o parto). Entre as principais causas dessas mortes, destacam-se a hipertensão (13,3%), hemorragia (7,6%), infecção puerperal (3,9%) e aborto (2,7%). No entanto, o documento faz uma importante ressalva: para a Área Técnica de Saúde da Mulher, os casos de mortes por abortamento podem ter sido maiores, já que muitas vezes as complicações decorrentes do aborto são registradas como hemorragias e infecções, o que pode camuflar as estatísticas do abortamento.

Dados do SUS indicam que em 2004 foram realizados 1.600 abortos legais em 51 serviços especializados do SUS ao custo de R$ 232 mil. No mesmo ano, ocorreram no SUS 244 mil internações motivadas por curetagens pós-aborto ? entre estes abortamentos espontâneos ou voluntários e feitos na clandestinidade - orçadas em R$ 35 milhões. As curetagens são o segundo procedimento obstétrico mais praticado nas unidades de internação, superadas apenas pelos partos normais.


Veja também: precisa de um aborto?

este post faz parte da blogagem coletiva pela descriminalização e legalização do aborto:
http://blogueirasfeministas.com/2012/09/blogagem-coletiva-pela-legalizacao-do-aborto/

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Rhoda Collage

Agora, estamos a salvo. Agora, nous pouvons voltar a nos endireitar. Agora, nous pouvons estender les bras no meio desta vegetação tão alta, dans ce vaste bois.
Não ouço nada.
– Agora vous voulez se afastar de mim, você e suas frases. Agora, vous voilà! me puxa a saia, olha para trás e constrói mais frases. 
Je vais placer ici une tête de pois de senteur, je vais colocar um farol aqui. Agora, vou embalar a minha taça d´argent d´un coté à l´autre para que os meus navios possam cavalgar as ondas. Quelques-uns vão se afundar. D´autres vont se briser contra os rochedos.
Mas há um que navega sozinho. C´est le mien, celui-là.
Le choeur nocturne a commencé. des chiens, rodas, des hommes que gritam, des cloches qui sonnent. O começo de um cântico.
Visto a roupa de dormir e je me couche por baixo deste fino lençol qui flotte dans la clarté diffuse.  Estou coberta por carne quente.
Contudo, sei que vou esticar os pés para que possam toucher na barra de ferro da cama; En touchant le barreau de fer, je constate la présence rassurante de quelque chose de... sólido.
Agora, já não posso afundar; agora, já não posso cair complètement à travers le lençol. Agora, estendo mon corps nesse frêle colchão et je plane suspendue. Je suis au-dessus de la terre. Já não estou de pé, já não podem me derrubar ou me ferir.
É melhor sair destas águas. Mais les vagues elas amontoam-se à minha volta, elles me roulent por entre leurs larges épaules; fazem-me virar; fazem-me tombar; je suis estendida parmi ces longues lumières, nestas ondas enormes, nestes caminhos sem fim.




Jinny


Tomo consciência deste mundo. Parmi les êtres femmes vertes, roses, perles-grises, sont les corps droits des hommes. Ils sont blanc et noir ; semblent un secret, tellement encaixados assim em suas roupas. Volto a ver a imagem de um túnel refletida na janela. En mouvement. Moi, j´avance e as figuras pretas e brancas daqueles homens desconhecidos miram-me. Suas mãos esvoaçam até as gravatas. Tocam coletes, bolsos, lenços. Ils sont très jeunes et ils sont ansiosos por causar boa impressão. Sinto brotar em mim milhares de possibilidades. Je suis brejeira, gaie. Mais oui também sou languissante, melancólica...



Apesar de enraizada, j´ondoie. Penchée à droit, toda dourada, je dis à un homem: “Viens”. Puis, ondulando nas sombras, eu digo a outro: “Non”. Há um que se afasta do grupo. Ele sai de sua imobilidade. Il approche.  Il vient em minha direção. C´est le moment le plus excitant que eu já vivi. Je frémis, j´ondule. J´ondoie comme une plante flottant dans la rivière, deslizando ora nessa direção, ora em outra... mas sob a superfície da água, solidamente enraizada: pois só assim ele poderá vir ao meu encontro, sem medo que a corrente me leve...
“Viens”, digo, “viens”. E ele pálido, de cabelos escuros, romântico, melancólico. Pour lui, eu me mostro brejeira, volúvel, caprichosa, justamente porque ele é romântico, melancólico. E está aqui, ao meu lado.
Agora, com um ligeiro puxão, sou arrebatada: sou levada para longe, junto com ele. Uma douce courant nos emporte. Saímos e entramos ao som desta música hesitante. Corpos rochedos interrompem a torrente de dança. Elle s´agit, estremece. Nossos corpos, forte o dele, fluido o meu, ils sont pressionés, um contra o outro, dentro do corpo cercle parfait dessa dança. Ah, ela nos embala, em suas dobras sinuosas, d´un coté a l´autre. A música para, de repente.
Apesar disso, o meu sangue continua a correr. 

estou coberta por carne quente


O beijo


Próximos daqui, Bernard, Neville, Jinny e Susan (mas não Rhoda) afagam os canteiros com as suas redes. Caçam as borboletas que pousam nas flores. Varrem a superfície do mundo. As redes estão cheias de asas esvoaçantes. “Louis! Louis! Louis!”, eles gritam. Mas não podem me ver. Estou do outro lado da sebe. Entre as folhas existem apenas diminutos orifícios para espreitar. Oh, Deus, fazei com que passem! Fazei com que deponham suas borboletas sobre um lenço no chão. Fazei com que contem as suas borboletas com manchas pretas e amarelas, as suas vanessas e borboletas-da-couve, mas que não me vejam. Sou verde como um teixo à sombra da sebe. Estou enraizado no centro da Terra. O meu corpo é um caule. Espremo o caule. Uma gota poreja na cavidade da boca, vagarosa, densa, e, aos poucos, vai-se tornando maior, cada vez maior. Agora, qualquer coisa cor-de-rosa passa pelo orifício. Agora, o raio de luz de um olho desliza pela fenda. A luz que dele emana incide sobre mim. Sou um menino num traje de flanela cinza. Ela me encontrou. Um toque na nuca. Beija-me. Tudo se desmorona.
Eu corria depois do café – disse Jinny. – Vi folhas que se mexiam num buraco na sebe. Pensei: “É um pássaro em seu ninho”. Afastei os ramos e olhei, mas não vi pássaro nem ninho. As folhas continuavam a mover-se. Fiquei assustada. Passei correndo por Susan, Rhoda, por Neville e Bernard, que conversavam no galpão. Enquanto corria, cada vez mais depressa, eu gritava. O que movia as folhas? O que move meu coração, minhas pernas? Foi então que aqui cheguei e te vi, verde como um arbusto, como um ramo, muito quieto, Louis, com os olhos vítreos. “Estará morto?”, pensei, e te beijei. Por baixo do vestido-rosa, o meu coração saltava como as folhas que, sem nada que as faça mexer, não param de oscilar. Agora, sinto o aroma dos gerânios; agora o cheiro do húmus. Danço. Ondulo. Sou lançada sobre você como uma rede de luz. E deixo-me ficar deitada sobre você, tremendo.
Pela fresta na sebe, eu a vi beijando-o – disse Susan. – Ergui minha cabeça do vaso de flores e espreitei pela fenda da sebe. Vi-a beijando-o. Vi Jinny e Louis beijando-se. Agora, vou embrulhar minha angústia dentro do meu lenço. Vou amassá-la numa bola apertada. Antes das aulas, irei sozinha ao bosque das faias. Não ficarei sentada à mesa fazendo cálculos. Não vou sentar perto da Jinny e do Louis. Vou levar minha angústia e depositá-la nas raízes, sob as faias. Vou examiná-la, pegá-la entre meus dedos. Não me encontrarão. Comerei nozes e procurarei ovos em meio aos espinheiros, meu cabelo ficará emaranhado, e vou dormir sob as sebes, bebendo água das poças, e vou morrer lá.
Susan passou por nós – disse Bernard. – Passou pela porta do galpão com seu lenço todo amassado numa bola. Não chorava, mas seus olhos, tão bonitos, estavam apertados como os de um gato antes do pulo. Vou atrás dela, Neville. Vou atrás dela com todo o cuidado para estar a seu alcance, com meu interesse, para confortá-la quando toda aquela fúria explodir e ela pensar: “Estou sozinha”. Agora ela atravessa o campo com toda a calma, para nos enganar. Agora chega à encosta: pensa que ninguém a vê e começa a correr com os punhos cerrados. As unhas cravam-se na bola em que o lenço se transformou. Corre para o bosque das faias, para longe da luz. Quando chega, abre os braços e entra na sombra como se nadasse. Mas está cega depois de tanta luz, e acaba por tropeçar e cair junto às raízes das árvores, onde a luz aparece e desaparece, inspira e expira. Os ramos movem-se para cima e para baixo. Aqui, a agitação é muita. Há sombra e a luz é indecisa. Tudo está pleno de angústia. As raízes formam um esqueleto no solo, com folhas mortas amontoadas nos cantos. Susan espalhou sua angústia. Pousou o lenço nas raízes das faias e soluça, dobrada sobre si mesma no ponto onde caiu.

a luz azul passeia.


A luz azul passeia. Recorta uma paisagem enluarando. No quadrado de luz, recostam-se duas pessoas. Elas conversam e sorriem relaxadas, mas não as ouvimos. O homem na guitarra improvisa a sua melodia enquanto a mulher que observa folheia o livro. Ela diz:
(enquanto ela narra, pode-se alterar, se for desejável, a luz da paisagem, talvez dando a ela os tons luminosos do sol).
“O Sol ainda não nascera. O mar não se distinguia do céu, a não ser pelo encrespado que cortava sua superfície, como um tecido que se enrugasse. Aos poucos, à medida que o céu clareava, uma faixa escura estendeu-se no horizonte, dividindo o céu e o mar. Então, o tecido cinzento coloriu-se de manchas movendo-se uma após outra, junto à superfície, perseguindo-se mutuamente, sem parar.
(pode-se também jogar com a projeção de paisagens, talvez substituindo a luz pura, a partir de algum momento. Sugere-se uma sucessão de cores ondas árvores folhas raiosol)
Aproximando-se da praia, cada uma dessas ondas erguia-se, acumulando-se para então quebrar-se e espalhar pela areia um fino véu de água branca. A onda parava, e partia novamente, suspirando como uma criatura adormecida, cuja respiração vai e vem sem que disso se aperceba. Aos poucos, a faixa escura do horizonte acabou por clarear, tal como se a borra numa velha garrafa de vinho se tivesse acomodado, restituindo à garrafa a sua cor verde. Atrás dela, também o céu ficou translúcido, como se os sedimentos brancos que ali se encontravam tivessem afundado, ou como se um braço de mulher oculto por detrás da linha do horizonte tivesse erguido uma lâmpada que espalhasse, por todo o céu, raios de várias cores, branco, verde, amarelo, como se fossem as varetas de um leque. Então, ela levantou ainda mais o lampião, e o ar pareceu tornar-se fibroso e apartar-se daquela superfície verde, bruxuleando e chamejando em flamas vermelhas e amarelas, como às que se elevam de uma fogueira. Docemente, as fibras da fogueira fundiram-se numa só brasa, uma incandescência que levantou o peso do céu cor de chumbo que a cobria, transformando-o num milhão de átomos de um macio azul. Docemente, transluziu a superfície do mar, e as ondas ali se deixaram ficar, murmurando e brilhando, até que as faixas escuras quase desapareceram. Docemente, o braço que segurava a lanterna elevou-se ainda mais, até uma chama brilhante se tornar visível; um disco de fogo ardendo na fímbria do horizonte, acendendo o mar inteiro em ouro.
A luz incidiu sobre as árvores no jardim, tornando, primeiro, esta folha transparente, e só depois aquela. Lá no alto, um trinado de pássaro. Depois pausa. E logo abaixo, outra ave soltou seu gorjeio. O sol aguçou os contornos da casa e pousou como ponta de um leque sobre uma cortina branca do quarto de dormir, deixando ali uma impressão digital azulada. A cortina estremeceu ligeiramente, mas, dentro da casa, tudo era penumbroso e sem substância. Fora, os pássaros cantavam uma melodia sem sentido.           

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Exercício para um teatro que virá




Agora, estamos a salvo. Já nos podemos voltar a endireitar. Já podemos estender os braços no meio desta vegetação tão alta, no meio deste bosque tão grande.
Não ouça nada.
– Estás-te a afastar, tu e as tuas frases. Agora, puxas-me a saia, olhas para trás e constróis mais frases. 
Vou colocar um farol aqui. Agora, vou embalar a minha taça castanha de um lado para o outro para que os meus navios possam cavalgar as ondas. Alguns afundar-se-ão. Outros despedaçar-se-ão contra os rochedos.
Mas há um que navega sozinho. É o que é verdadeiramente meu.
...
Estou coberta por carne quente.
Aperto o pijama e deito-me por baixo deste fino lençol, flutuando numa luz pálida. 
O começo de um cântico. rodas, cães, homens a gritar, sinos de igreja. o começo de um um cântico.
- No momento em que dobro o vestido, ponho de parte o desejo.
Contudo, sei que vou esticar os pés para que possam tocar na barra da cama; quando a tocar, ficarei mais segura por sentir qualquer coisa de sólido.
Agora, já não me posso afundar, agora, já não posso cair através do lençol. Agora, estendo o corpo neste frágil colchão e fico suspensa. Estou por cima da terra. Já não estou de pé, já não me podem derrubar nem estragar.
É melhor sair destas águas. Mas elas amontoam-se à minha volta, arrastam-se por entre os seus grandes ombros; fazem-me virar; fazem-me tombar; fazem-me estender por entre estas luzes esguias, estas ondas enormes, estes caminhos sem fim.

(apropriando-me de as ondas, de virginia woolf: cortes, colagens, transformações)

‎"eu quero poder falar com vida, sem que a palavra pareça... folha? falsa? fraca?"


Uma douce courant... interrompe. 
belo tango. ações corporais. 
Fred e Lica giram numa quasedança. 
Leandro e Saulo compõem com Wagner um só animal. ele bate palmas. 
a dramaturga escreve, sob a luz da lanterna. faz parte da cena? 
gritos gorgolejos da música lembram à Lica as mulheres galinhas de strange fish. ela dança as mulheres com Saulo em um salão de baile cheio de corpos. 
Clarissa examina Matheus. Depois examina Admar. Ela examina rostos em meio à dança.
 Why? Why? Why? Uai! Uai... Why... É a palavra do corpo. O corpo é frase.


Ensaio das Ondas, ontem, dia 18.09.2012. na Gruta!

quinta-feira, 26 de julho de 2012

A submissão da mulher está no olhar masculino. Artigo de Pierre Bourdieu


O artigo é "uma reflexão sobre a percepção feminina do próprio corpo como 
"corpo para o outro" em uma sociedade totalmente mercantilizada". 
Publicado na última edição da revista Lettera Internazionale
totalmente dedicada à questão feminina. 
O texto foi publicado originalmente na revista Cahiers du Genre, 2002/2. 
O trecho foi republicado no jornal La Repubblica, 24-07-2012. 
A tradução é de Moisés Sbardelotto".

Eis o texto.

Há muitos trabalhos de antropologia comparada sobre a região mediterrânea que tendem a mostrar que a Cabília[região montanhosa do norte da Argélia], por razões históricas, funcionou como um lugar em que se preservou intacta uma espécie de inconsciência mediterrânea, aquele inconsciente rastreável tanto nos textos da Grécia antiga quanto nos da Grécia atual ou da Itália do Sul, mas também da Espanha ou, em geral, de todas as costas do Mediterrâneo. A Cabília conservou esse sistema ainda em funcionamento e, consequentemente, coloca diante dos nossos olhos o nosso próprio inconsciente cultural em matéria de masculinidade e de feminilidade. Isso se deve à constância das estruturas simbólicas sobre as quais se baseia a nossa representação da divisão do trabalho entre os sexos.

E se essa constância é atestada, coloca-se a questão das condições sociais que a tornam possível. Em outras palavras, o que deve haver de específico na lógica do simbólico da qual faz parte a representação da oposição masculino-feminino para que, além das mudanças econômicas, além das transformações tecnológicas, se possam captar semelhanças tão profundas entre estados tão diferentes da sociedade?

Se o domínio masculino pode se perpetuar, sem dúvida com alterações, mas menores do que se possa acreditar, apesar das mudanças tecnológicas e econômicas ocorridas, isso talvez tenha a ver com o fato de que a ordem simbólica, ou aquele que eu chamo de mercado dos bens simbólicos, constitui um âmbito relativamente autônomo com relação à ordem econômica e à ordem tecnológica.

Há uma lógica específica da economia dos bens simbólicos distinta da econômica, e essa lógica também pode funcionar em parte dentro da ordem mais estritamente econômica (e aqui eu poderia recordar um belo trabalho sobre as acompanhantes pagas que, no Japão, acompanham os homens às custas das grandes sociedades, trabalho que mostra como as burocracias modernas utilizam as estruturas mais tradicionais da divisão do trabalho entre os sexos para cumprir funções econômicas ultrarracionais).

A lógica específica da economia simbólica se perpetua, de fato, até mesmo nos âmbitos mais estreitamente econômicos, como o das empresas, e é observada principalmente em determinados universos, por exemplo o da produção cultural (não é por acaso que se trate de um dos campos mais feminilizados), da literatura, da arte, da televisão, da rádio ou o religioso (onde se encontram, e mais uma vez não por acaso, muitas formas de voluntariado feminino), e, finalmente, na ordem doméstica.

Também se deveria mostrar, mas isso também requer muito tempo e espaço, a lógica específica dessa economia e aquilo que faz com que ela se perpetue também a despeito de todas as necessidades econômicas nas sociedades mais permeadas pela lógica capitalista.

Mas, acima de tudo, é necessário mostrar que, na base da situação dominada da mulher e da sua perpetuação para além das diferenças temporais e espaciais, está o fato de que. nessa economia, a mulher é mais objeto do que sujeito. Devem ser lembradas, nesse ponto, as famosas análises de Lévi-Strauss sobre a troca de mulheres, reinterpretando-as de modo a poder nelas introduzir a dimensão política (penso no domínio que pressupõe a troca e que se realiza e se reproduz através dela).

Vou me deter por um instante sobre o papel passivo atribuído à mulher e que me parece se encontrar, ainda hoje, como fundamento da relação que as mulheres têm com o próprio corpo, uma relação que tem a ver com o fato de que o seu ser social é um ser-percebido, um “percipi”, um ser para o olhar e, se assim se pode dizer, um ser através do olhar, suscetível de ser utilizado, nesse título, como um capital simbólico.

A alienação simbólica à qual condenadas, visto que são destinadas a ser percebidas e a se perceber através das categorias dominantes, isto é, masculinas, se retraduz na própria experiência que as mulheres fazem do próprio corpo e do olhar dos outros que foi bem evidenciado e analisado por uma fenomenóloga norte-americana da qual, infelizmente, não terei o tempo para resumir as análises.

Pelo fato de eu temer muito ser mal entendido, vou tentar me explicar com um exemplo, remetendo-me a um belo artigo sobre as mulheres e o esporte. O artigo mostra que a prática intensiva de uma certa disciplina esportiva determina nas mulheres uma transformação da relação com o próprio corpo e lhes permite aceder a uma visão dele que se poderia definir como masculina; permitir-lhes, enfim, ter um corpo para si, em vez de serem um corpo para os outros, dá-lhes um corpo que é, em si mesmo, o próprio objetivo. O que, além disso, deixa emergir claramente o fato de que o corpo imposto em tempos normais é, portanto, um corpo-para-o-outro, um corpo habitado pelo olhar dos outros, um ser percebido.

A alienação ligada ao fato de ter um corpo visível e de se encontrar, portanto, sempre sob o olhar dos outros apresenta diversos graus: é ainda mais poderoso quanto mais se desce na hierarquia social, porque se tem mais oportunidades de ter um corpo pouco conforme aos cânones dominantes. E encontra o seu próprio limite justamente nas mulheres às quais a experiência do corpo como corpo para o outro se impõe com uma força particular por causa do papel que lhes é prescrito no mercado dos bens simbólicos, onde elas são objeto, ser percebido, capital simbólico, que devem gerir – e do qual são, de alguma maneira, as contabilistas – perante os homens.

A transformação da relação com o corpo através do esporte é acompanhada por uma transformação profunda das relações com os homens. As mulheres, nesse caso, deixam de parecer femininas, isto é, disponíveis, ao menos simbolicamente. A sua relação com o próprio corpo mudou a tal ponto que já não respondem mais às expectativas socialmente constituídas sobre o que é uma mulher. Sem dúvida, se poderiam fazer considerações semelhantes no que se refere à mudança da relação com o corpo relacionada às profissões intelectuais.

Uma última palavra para expressar uma saudade: eu recordei a existência de uma economia de bens simbólicos relativamente autônoma com relação às bases econômicas da sociedade – uma autonomia relativa, evidentemente –, mas eu não analisei sobre que se fundamenta tal autonomia e o modo pelo qual ela se radica na lógica da reprodução biológica e sobretudo social. Eu não mostrei como as novas tecnologias da reprodução biológica, por exemplo, podem contribuir para transformar a dicotomia produção/reprodução que é o fundamento da economia dos bens simbólicos. Ao longo desse caminho, eu poderia abordar o problema do nexo entre relações sociais entre os sexos e relações sociais entre as classes. Mas não posso fazer nada mais do que enunciar os títulos dos temas que eu gostaria de tratar e me deter.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

performatite: a cena inflamada


de 20 a 22 de maio, estivemos em ouro preto para o encontro de coletivos das di-ver-cidades, dentro do circuito performatite. e isso, pro obscena, foi uma felicidade, pois, desde o ano passado, estávamos projetando um encontro como esse, que possibilitasse a troca de práticas, a conversa e o broto de novos projetos junto a coletivos com os quais já havíamos iniciado um diálogo. juntou-se a isso, a oportunidade de pensá-lo dentro do circuito performatite, a partir da proposta de seu coordenador, weber cooper. o circuito integraria a 8ª semana de artes, coordenado pelos alunos do departamento de artes da ufop.
casou a fome com a vontade de comer. e lá estávamos nós, com mais quatro outros coletivos que, de algum modo, tinham, como a gente também tinha, sua história entrelaçada com a ufop e com ouro preto.
alguns eram coordenados por professoras que já haviam injetado, em sua passagem pelo departamento, esse vírus, essa inflamação da performance nos alunos de lá, e que agora estavam fazendo isso em outros cidades/estados, como a sandra parra - professora da uel e coordenadora das incríveis laranjas podres performáticas (londrina/pr) - e a eloísa brantes, professora da uerj e coordenadora do coletivo líquida ação (rio de janeiro/rj).
outros tinham surgido de grupos de pesquisa, de uma formação que integrava professores e/ou alunos do curso de artes cênicas do deart/ufop, como o próprio obscena. eram eles o n3ps - nômades permanentes pesquisam e performam, coletivo com o qual o obscena já vem trocando práticas e experiências e que é integrado por clarissa alcantara, que também foi professora do deart; e o coletivo quando coisa, este legitimamente ouropretano, ou seja, formado por pessoas vindas de outros lugares, todos alunos e egressos da ufop (paulinho maffei, everton lampe, marcelo fiorin, bárbara carbogim, thálita motta e henrique rocha) e também coletivo com o qual já havíamos trocado práticas.
o encontro de coletivos, em si, foi maravilhoso.
embora tenhamos tido pouco tempo para a conversa dentro do próprio encontro, a prolongávamos no bar, e dava certo. claro que, ainda assim, o tempo foi pouco. muito pouco.
ah, mas as práticas... ah, as práticas... daqui a pouco falo delas.
queria que os alunos tivessem aproveitado mais esse momento. poucos apareceram e nenhum esteve presente o tempo todo das trocas, participando de todas as ações. isso me fez pensar sobre a efetiva troca com a universidade, pois vi os alunos participando somente nos momentos mais claramente acadêmicos, como a palestra e a mesa-redonda. nós, que participamos de tudo, podemos dizer (eu, em meu nome): aproveitamos muito! (sinto, somente, não ter podido participar da ocupação deart, evento que também fazia parte do performatite e que era uma mostra dos projetos/trabalhos dos alunos do departamento, mas foi necessário prolongar o tempo do nosso trabalho entre coletivos).
no primeiro dia, após a palestra do leandro - que começou com um forte atraso, o que prejudicou o nosso encontro depois - tivemos pouquíssimo tempo para conversar e pensarmos juntos sobre como queríamos realizar nossas trocas, no dia seguinte, entre os coletivos e com os alunos do deart.
mas penso que as práticas superaram, em muito, essa ordem das coisas.
começou com a discotecagem, no próprio domingo dia 20. os obscênicos djs ninon, frida e djota arrasaram no comando da pista de dança, no bar tribus - o bar da semana de artes. claro, que com o insubstituível apoio do nosso homem, paupratodaobra, admarzinho fernandes...
dia seguinte, 9 horas da manhã, pronta para o trabalho. estávamos em menor número do que eu havia imaginado, a princípio. resolvemos, então, não separar mais em dois grupos e ficarmos todos juntos, fazendo a ação em conjunto. começamos com o ato/processo, proposto pelo n3ps: "é possível viver sem uma imagem de si mesmo?", era a questão que clarissa lançou como provocação.

foto de nina caetano

do ato/processo, experiência bastante forte, passamos para a dança com a cidade, proposta pelos laranjas podres. nesta, deveríamos sair aos pares e dançar a partir dos ruídos/estímulos da cidade. delícia.


vídeo de henrique rocha

na parte da tarde, como éramos praticamente os coletivos, resolvemos manter o grande grupo formado por todos nós e, juntos, partirmos para as ações coletivas. começamos com a maravilhosa proposta do coletivo quando coisa: fluxo queda. nesta, uma pequena fila indiana segue o fluxo de um transeunte, até que este é cortado. com o corte do fluxo, queda! a fila inteira caía ao chão.



vídeo de nina caetano

após o fluxoqueda, retornamos ao bloco b, para nos preparamos para um ritual, composto pela ação proposta pelo wagner, do n3ps, o bloco do silêncio, procissão que nos conduz à última ação do dia, o banho, proposta do coletivo líquida ação. que dia! intensidades.

foto de nina caetano

dia seguinte, era o dia do obscena. ou melhor, na parte da manhã, estavam concentradas nossas propostas e ações. pois, na parte da tarde, teríamos uma mesa-redonda em que todos os coletivos estariam presentes.
nesse dia, lamentavelmente, os laranjas podres não estavam mais com a gente e os alunos tinham desaparecido. então, éramos nós, líquida ação e quando coisa. resolvemos, então, pela simultaneidade (e possível incorporação) da ação coletiva "cadeiras", proposta pelo fred caiafa, às ações individuais dos pesquisadores do obscena. eram elas: o engaiolado do sorriso preso (matheus silva, incorporado pela joyce malta), os irmãos lambe lambe (clóvis domingos e leandro acácio), a mulher no palanque (lissandra guimarães) e mania de toalha, ritual de cura (saulo salomão). todos incorporaram as cadeiras - algumas intervenções, como o lambe-lambe, já trabalhavam com uma - e partimos para a rua, comigo e com fred também desenvolvendo nossas ações a partir do caráter mais aberto do que havia sido proposto por ele: experimentar, durante uma hora, relações com uma cadeira, no ambiente de rua.


fotos de thaís chilinque

eu, por meu lado, trabalhei com um elemento plástico: a cor vermelha. escolhi ser um bloco da cor, com todas as minhas roupas e acessórios em seus vários tons, exceto a bota que, como os pés da cadeira, eram pretas. equilíbrio. declive. pesos. experimentação de "pontos de vista" diversos. composições com as cores/formas da cidade. com as pessoas. esteve bom. quero mais.

foto de clarissa alcantara

quinta-feira, 8 de março de 2012

8 de março: eu luto.

02 de fevereiro: Ana Alice Moreira de Melo, 35 anos, procuradora federal. Assassinada pelo marido, com várias facadas, em Nova Lima/MG. Apesar da solicitação de medida protetiva.
12 de fevereiro: Michelle Domingos, 29 anos, secretária; Isabela Pajuçara, 28 anos, professora. Estupradas e assassinadas em um estupro coletivo oferecido como presente de aniversário, em Queimadas/PB. Os algozes se diziam amigos das vítimas.
15 de fevereiro: no Rio de Janeiro, menina de 12 anos é estuprada em coletivo. Ninguém viu nada. Ninguém fez nada. 
22 de fevereiro: Ana Elisabeth de Oliveira, 21 anos, estudante. Morta com um tiro no rosto, em Nova Iguaçu/RJ, por reagir a assédio de seu assassino em baile de carnaval.


Também em fevereiro de 2012, Lindemberg Alves foi condenado a 98 anos de prisão pelo assassinato de Eloá Pimentel, 15 anos. A adolescente foi morta no dia 17 de outubro de 2008, com um tiro na virilha, após o assassino mantê-la em cárcere privado por 100 horas.


No entanto, o assassino de Mércia Nakashima, 28 anos, advogada, morta em maio de 2010, segue impune. Ele era seu ex-namorado.
Também seguem impunes os assassinos de Eliza Salmúdio, 25 anos, atriz pornô. Em junho de 2010, ela é assassinada, esquartejada e jogada para os cachorros, a mando de seu ex-amante e pai de seu filho. E o assassino de Maria Islaine de Morais, 31 anos, cabelereira, morta pelo ex-marido com 7 tiros em seu próprio salão de beleza, apesar das câmeras de segurança, do registro de queixa e pedido de medida protetiva.   
Como estas, milhares de mulheres brasileiras foram assassinadas nos últimos anos - estima-se que, de 1998 a 2008, foram mortas mais de 42 mil mulheres no Brasil - por homens que diziam amá-las.
Seus algozes seguem impunes.
até quando?????