terça-feira, 17 de junho de 2008

o julgamento

– Nem bonita, nem feia. Secretária. Eu ficaria muito grata se você, antes do início da sessão, me fizesse um pequeno relato sobre o caso.
– Ela saía muito cedo de casa. Ainda tava escuro. Qualquer dia desses, ela ia ser encontrada morta num beco sujo. Um dia ela tava caminhando e uma coisa aconteceu. Ela viu o sol. Mas um lapso e o escuro. Um cano estourou perto dela. Pausa. Aquilo dava um aperto no coração. Podia ter estourado dentro dela.
(A rua tava vazia. Só uma mulher. Bonita, loura. Loura gelada... )
– Um lapso e ela continua o caminho. Pela cidade deserta. A rua tava vazia. Um homem. Seria o príncipe encantado que iria salvá-la? Amá-la? Casá-la? Matá-la? Desviou, sumiu de vista. Naquela hora, parecia que tinha uma outra cidade na cidade. Outras ruas. Invisíveis. Atravessa a rua. Toma um café na lanchonete da esquina e fuma um cigarro. Ela tinha que bater o cartão. Às oito e ponto. Mas alguma coisa aconteceu. Entre as 06:15, quando despertou, e o momento em que devia pegar o metrô. O metrô estava lotado. Como sempre ela ia em pé. Na ida, todos iam silenciosos. Mas na volta, não. As pessoas falavam sem parar. A senhora já reparou nisso? Já?
(A loura. Aproveitava o metrô lotado para roçar na loura. Gostosa. Ela endurecia o corpo, mas deixava. Ela desce do metrô e ele a perde.)
– Ela desce do metrô e entra no prédio. Primeiro andar. Os corredores. Segundo. Terceiro. Quarto. Cumprimenta as pessoas. Quinto. Sexto. Sétimo. O escritório. No oitavo andar.
– Os fatos. Vamos aos fatos. Vejo que os senhores jurados já ocuparam seus lugares. É um prazer tê-los aqui, tão dispostos a ajudar... Desculpem, mas o crime ainda não foi encontrado. A senhora, por favor, quer se sentar?
– Sim, senhora. Quero. O que foi que eu fiz?
– Nada. A senhora não fez nada. Por favor, comecemos o julgamento. A senhora. Pode sentar-se.
– Sim, senhora. Mas o que foi que eu fiz?
– A senhora ainda não fez nada. Mas vai fazer. Até o fim do julgamento, a senhora vai fazer. Por favor, prossigamos.
– Eu só estava um pouco atrasada. Sempre pegava o metrô às sete e meia. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Às 06:30 ela acaba o banho. Coloca a roupa. Passa o batom. Nem bonita nem feia. Secretária.
– Lembre-se que está num Tribunal do Júri.
– Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela.
– Estou disposta a pesar todos os lados da questão. Mas os fatos. Não a história.
– Desculpa, foi o stress. Eu já disse que ela era frígida?
– Mas disso não consta uma só palavra na acusação. Como devo julgar? Onde está a pasta com a acusação? Preciso dela. Preciso saber quem são os acusados. Como posso saber?
– Ela esquecia as palavras. Não sabia falar com ninguém. Ela era frígida. O que me matou foi o sorriso do meu patrão, doutora!
– Então confessa?
– Eu estava ali. Sem calcinha. Loira, aproximadamente 28 anos. Sozinha. Ninguém reclamou o corpo.
– Qual foi o crime? Ela matou ou foi morta?
– Não sei, doutora. Ainda não aconteceu.
– Vamos aos fatos!
– Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo.
– É fácil dizer isso. Mas eu tenho de conduzir um julgamento. Hoje em dia, não é fácil saber onde está a justiça. Eu já li isso em algum lugar? Vamos aos fatos. Foi um dia normal? A senhora tinha feito seu trabalho direito?
– Sempre pegava o metrô às sete e meia. Mas naquele dia as pessoas me olhavam esquisito. Sempre. Não, aquilo era coisa da cabeça dela. Ela era invisível. Ninguém a via, nunca.
– Então como ele sabia que a senhora estava lá?
– Ela sempre quis ser linda. Ser modelo, atriz. Bailarina. Mas ela era invisível.
– Como ele sabia que a senhora estava lá?
– Pelas minhas ações e pela minha voz. “O senhor deseja alguma coisa?”
(Desejo, sim...)
– De repente eu fiquei zonza! Perdi a noção. No chão, os papéis espalhados. Minha meia rasgada. Eu fiz muito esforço para chegar até aqui e é assim que o senhor me trata?
– Então você confessa? Você sabe muito bem que se pode insultar alguém sem usar a voz. Basta um gesto.
– Sempre pegava o metrô às sete e meia. A blusa branca. De botões. O sapato preto. Tudo organizado. Às 06:30 eu acabo o banho. Digo, ela. Ela coloca a roupa. Digo, eu. Eu gosto de vermelho. Mas passo um batom rosa. Digo, ela. Ela machucou a boca na quina da cama. Eu. Ela. Ela adora passar batom. Ela não é bonita. Mas fica linda de batom.
– Uma ameaça.
– Ele nunca me ameaçou. Ele nunca me olhou. Ele nunca falou comigo. Ele tinha do bom e do melhor. Bebida, só importada. Carro do ano. E uma mesa nova. Caríssima. Era artigo de qualidade. E muito útil. A mesa valia mais do que eu. Digo ela.
– Basta a opressão diária.
– Era artigo de luxo. Ela era um objeto útil. Funcional. Mas ordinário. Substituível. Não tinha sido esculpida, grafada, assinada. Nem desenhada por ninguém. Sua vida não tinha poesia. Ia morrer saltando de uma janela imunda, num cubículo imundo na área do meio dos prédios. O prédio fechado. Sete e meia da noite. E ninguém ia ver.
– A proibição de fazer o que se sente.
– Volta ao escritório. Servimos bem para servirmos sempre! Trabalhava como se fosse o último dia de sua vida. As folhas amarelas são requerimentos. As verdes vão para a contabilidade. Ela cumprimenta a colega: “Obrigada pelas flores!”.
– A proibição de se dizer o que se pensa. Aquilo era seu ou tinha lido isso em algum lugar?
– Vai até o banheiro. Senta-se na privada e digita. Um belo texto. (Vaca...). Um texto imaginário. (Cadela!) Maravilhoso. (Cachorra!) Cheio de palavras que ninguém conhece. (Puta!) Eu devia ganhar o prêmio de funcionária do ano. Ele peidava na minha cara. E eu tinha que rir de suas piadinhas. Alguma coisa aconteceu entre às 06:15, quando acordou e às dezenove e trinta, hora em que devia pegar o metrô. E logo agora que ele tinha falado com ela, sido até simpático.
(Puta!)
– Onde está minha estrutura sólida? Onde está o chão sob meus pés? O que me sustenta? O que eu posso sustentar? Elas se olham durante um longo minuto. Você quer água?
– Sim. Quero.
– Por que me olham assim? Não sou acusada de coisa alguma! Estou pronta a examinar minuciosamente todos os aspectos da questão. Preciso saber qual a decisão que atende os interesses mais altos! Eu sofro de hérnia, não posso ter problemas. Eu tenho família! Que tão olhando? Que tão olhando?

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