sábado, 19 de julho de 2008

texturas puras da cena


O dramaturgo-encenador é um pintor que dispõe de uma paleta viva; o ator guia a sua mão na escolha das cores vivas, na sua mistura, na sua disposição; depois, penetra ele próprio nessa luz e realiza, em duração, o que o pintor só teria podido conceber no espaço.
(Adolphe Appia)

Textura é o aspecto de uma superfície ou seja, a "pele" de uma forma, que permite identificá-la e distinguí-la de outras formas. As texturas artificiais – a cena é uma delas – resultam da intervenção humana através da utilização de materiais e instrumentos devidamente manipulados. Em música, textura é a qualidade global do som de uma obra musical, mais freqüentemente definida pelo número de vozes na música e na relação entre essas vozes. Uma textura polifônica, em música – como no teatro – contém duas ou mais linhas de voz independentes. Como tecer as diversas vozes presentes na criação?
Aposta do Núcleo dos Festivais Internacionais de Artes Cênicas do Brasil – que, há cada dois anos viabiliza um projeto de montagem a ser apresentado em todos os festivais que o integram (Festival Internacional de Londrina, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, Porto Alegre em Cena, Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte, Cena Contemporânea Festival Internacional de Teatro de Brasília e riocenacontemporanea), Congresso Internacional do Medo, montagem realizada pelo grupo Espanca!, de Minas Gerais, é uma aula de inquietude e rigor cênico. Realizado em processo colaborativo – e obra ainda em processo – a partir do título do poema de Carlos Drummond de Andrade, essa montagem talvez seja o exemplo mais acabado do conceito proposto para essa edição do FIT São José do Rio Preto, expresso por Luis Fernando Ramos no provocativo ensaio que integra a revista do festival. Diz ele: “Pensar a dramaturgia da cena (...) como puro opsis, matéria concreta tornada visível, textura. Nessa hipótese, criar uma cena menos do que tecer um novelo de ações (...) seria constituir uma semântica de superfícies, tessitura de cores e imagens, apresentação de objetos não previamente identificados”.
Precisamente é o que se vê na cena urdida pela insólita artesã diretora dramaturga orquestradora de vozes Grace Passô. No palco, uma mesa de tronco sobre um tablado coberto por um tapete pele de vaca. À direita e à esquerda, ao fundo, dois vasos grandes de planta. À frente, à esquerda, um enorme filtro de água. Ao fundo, à direita, uma cadeira de rodas. Estranha mistura em que a limpeza quase asséptica do cenário contrasta com os elementos naturais que o compõem. Terceiro sinal. As luzes se apagam. No escuro, corpos adentram o palco. Suspensão. Ainda no escuro, eles se movem. Pequenos flashes de luz formam quadros à sua passagem. Suspensão. Algo que já não está ali se instala. O congresso. O tempo da construção. Silêncio. Nada está dado. Os congressistas, cinco, vestidos de branco, se instalam na mesa. Representarão culturas nações diferentes, dado manifesto nas vestimentas que trajam. Índios. Um ocidental. Oriente Médio. Os bailarinos, com quimonos pretos, instalam-se próximos ao filtro. Na cadeira de rodas, a tradutora. Mais que personagens, os seres que transitam em cena são quase metáforas construídas a partir de traços que negam a reprodução mimética. A mulher encoberta, o homem dos animais, o homem das utopias...
Jogando com simultaneidades, superposições de discursos e sistemas, passagens quase em fade, a insólita Grace tece pura dramaturgia da cena. Sao elementos poderosos desse jogo a interessante manipulação do discurso verbal, em que línguas inventadas se misturam ao registro poético do habitante da Ilha do Cedro/Pau Brasil. Interessante jogo de perversão de sentidos entre a palavra expressa e a tradução da palavra. O jogo poético com as palavras, as palestras em outras línguas, desconstroem constroem outros sentidos. Bem como a presença dança dos bailarinos peixes em extinção, outras camadas. E as camadas sentidos significâncias vão sendo construídas – repito, aqui nada é dado – não só pela cena, mas também por nós que, sentados nas cadeiras da platéia, somos chamados a sacrificar nossa passividade confortadora e, ativos espectadores dessa cena múltipla, rugosa, também criar. Aqui, ontem, nós também parimos.
Nina Caetano

quarta-feira, 16 de julho de 2008

como dançar um tango

Seis refletores. Três biombos em cena. Em cena, pouquíssimos objetos que se entrelaçam na tessitura dessa trama tango tragicomédia. Pente. Bule de café. E rosas. As rosas.
Inteligente, sofisticado e preciso, o Teatro Independente, composto por jovens artistas do Rio de Janeiro, nos surpreendeu com o belo trabalho livremente inspirado no universo rodrigueano. De uma maturidade técnica impressionante para a idade de seus realizadores – são todos, entre dramaturgo, diretor e atores, jovens abaixo de 25 anos - O espetáculo Cachorro!, que teve sua última – e quente – apresentação realizada nessa segunda, dia 14, no Sesc de São José do Rio Preto, foi uma experiência apaixonante. O jogo sutil, quase cinematográfico, das sombras (como é cinematográfica a opção dramatúrgica, feita de cortes e edições, sublinhadas pela movimentação dos biombos). A gestualidade marcada dos atores. As pérolas verbais engendradas pelo brilhante dramaturgo Jô Bilac, numa bela dosagem de cotidiano e lirismo. Sem o moralismo de Nelson, o espetáculo texto trama nos mergulha nos meandros viscerais do desejo, sem perder, em absolutamente nada, a potência patética, ridícula, desse triângulo em que se debatem a mulher, o marido e o amante.
Uma voz em off (que logo descobrimos ser de uma cartomante) prenuncia o desfecho. A sombra de Solange, a mulher, escuta. Em breve, o triângulo se formará no palco, prenunciam as sombras. Nesse jogo, não haverá culpados. Só desejo. Corpos. Carne. E sangue. Mas o sangue ainda está distante. Quase nos esquecemos dele, apesar da mórbida obsessão – obsessão não, interesse – de Solange por recortes de jornal que anunciam a tragédia de cada dia. Solange coleciona mulheres mortas. É maravilhosa a cena – que passa do cômico ao patético num gesto – em que Apoprígio, o marido, revela ao amigo, freqüentador assíduo nos horários de almoço e já “de casa”, a morbidez da mulher: ela já beijou o cadáver de uma prostituta. Instaura-se a repetição cômica: o Almeidinha já beijou homem, o primeiro beijo do marido foi em um cabrito. No auge da explosão dos risos, em que Solange e Almeida ensaiam uma cumplicidade, Apoprígio agarra a esposa. Um beijo longo, profundo, cheio de desejo. E vemos o amante traído, ferido. Cadê o amor de conta-gotas do casal? “Eu sou mais corno, porque eu sei e concordo.” As máximas do texto, originais, brincam com a dicção típica de Nelson (vale notar que a palavra Cachorro! não é mencionada uma única vez no texto inteiro). Elas desfilam, entre irônicas e pungentes. “O nosso amor não pega sol”, reclama o amante, num rasgo apaixonado. A mulher, dividida de corpo e alma entre o amor de marido e o amor de amante, lança, no momento culminante da tragédia: “o que você queria? Que eu dançasse frevo?”
Mas... e as rosas? Não posso deixar de mencionar aqui o belíssimo desfecho, prenunciado desde o início deste modesto comentário: enlouquecido de desespero e ciúme, o amante, Almeidinha, escreve uma carta anônima ao amigo, na qual relata tudo. Ele planeja um flagrante, à tarde, na cama do marido. Durante o almoço, Apoprígio, engasgado literalmente com a carta recebida, acossa o casal de amantes (mais uma pérola: “anônimo não mente!”). O marido sai para o trabalho. Ele sabe, diz Solange. Almeidinha pede: morre comigo. Em um belo movimento de tango, o canivete passa da mão do amante para a da mulher, e das mãos da mulher para o ventre dele. Apoprígio retorna à casa. Traz rosas vermelhas e um presente na mão. Palavras cruéis, lancinantes, são trocadas entre o casal. Desesperada, ela o fere com a boca como havia antes ferido o amante com a lâmina (me desculpem a licença poética). Último acorde: lançada em meio às rosas vermelhas, Solange é sufocada pelo sangue pétalas mãos de marido. Ùltima convulsão: ele, o marido, desembrulha o presente que levara. Um bombom. Ele devora. E em mim acontecia um fenômeno raro: eu chorava e ria ao mesmo tempo. E não estava sozinha.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

olhares obscenos

festival internacional de teatro de são josé do rio preto. 11 de julho de 2008. ontem assisti aqueles dois, montagem do luna lunera sobre a obra de caio fernando abreu.
preciso falar sobre eles.
Os atores se aquecem. Seus corpos brincam/dançam no espaço. O público entra. Primeiro sinal: uma carta de Caio. O público entra. Os atores se preparam. Ajudam o público a se acomodar. Revezam-se ao microfone. Pequenas pílulas do que virá depois.
As narrativas permearão todo o trabalho. Os quatro atores revezam-se agora, os corpos em contato, como se revezarão para compor esses dois homens, mas não só. São várias as camadas dessa textura (texto, obra, história?) e instâncias de atuação. Revezam-se personagens, narradores, atores narradores e os atores criadores dessa tessitura. A história de dois homens – almas especiais num deserto de almas – mistura-se ao processo de criação da obra. O processo está ali e se desenvolve aos olhos do espectador. Texturas. A obra não está sozinha. Raul e Saul confundem-se com seus criadores. Confundem-se gostos e almas. Quais discos são de Saul (ou Raul?), quais são do ator? É o pássaro Gardel quem desafina na última nota ou é o ator que empresta seu assovio? Ele desafina na última nota, reparou? É tão bonitinho... isso se viu aqui. Como vimos o encontro no café de todo dia. A rotina da repartição. Os filmes que os unem (são Raul e Saul que gostam de Almodovar ou são os atores?).
O que não vimos, eles nos contam. Escolhem trechos do conto, revelam seus pensamentos/posições sobre os personagens. Dedicam aquele dia a alguém. Eles sempre dedicam. Hoje, aqui em são josé, o espetáculo será dedicado a Roberta Carreri e Torgeir Wethal, companheiros de Eugênio Barba e é ele quem diz: será ação tudo aquilo que atingir o espectador em sua sinestesia ou compreensão. A dramaturgia nada mais é do que isso. Composição de ações e o texto, nada mais que tecido, trama, tessitura. Aquilo que atinge não só o espectador, mas o criador engajado na obra.
No ínicio, um dos atores, Odilon, diz as palavras de Caio: as pessoas reclamam que eu transformo em palavras todo o meu processo mental, “processo mental”, é assim que eles falam, e eu acho engraçado. E que isso assusta as pessoas, que é preciso disfarçar, enganar, mentir, esconder e eu não queria que fosse assim. Queria que as coisas fossem mais simples, mais claras, mais limpas. E o ator diz: “Caio Fernando Abreu, Carta pra além do muro, página 249. Eu não lembro o nome do livro, da edição, mas a página eu nunca esqueci. Página 249”. Lembrei-me disso porque não posso deixar de mencionar o que me parece ser a questão fundamental que move a criação dessa obra: a relação entre as representações sociais e teatrais. Porque aqui tocamos nas máscaras, fingimentos e preconceitos. Tocamos no olhar do outro. Eu disse que o processo se desenvolve aos olhos do espectador. Sob esse olhar obsceno. Como são obscenos os olhos vazados, sem íris nem pupilas que nos olham no final. Desenhos na parede do fundo daquele galpão preparado para receber essa montagem. Olhos vazados, sem expressão nem sentimento. Olhos incapazes de ver para além das imagens que já conhece. Das representações que já domina. Dos rótulos que propaga. E que serão infelizes. Se deus quiser.