quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

uma escrita performada

"somos incontornáveis e irreversíveis" (hosana. marcha mundial das mulheres)
À luz dos conceitos de performance e performatividade, abordados ao longo da disciplina Teoria e Prática do Teatro: além dos limites, pretendo discutir os processos de construção do que denomino como escrita performada – a escrita no espaço e no calor da ação – durante as intervenções urbanas de Baby Dolls, uma exposição de bonecas, realizadas pelo Obscena, de outubro de 2008 a novembro deste ano, em Belo Horizonte, São José do Rio Preto e Recife.
O Obscena, agrupamento independente de pesquisa cênica coordenado por mim e pela atriz Lissandra Guimarães, vem, desde março de 2007, pesquisando experimentos cênicos que têm como referência o universo marginal da mulher e que propõem a revisitação e reterritorização das relações entre o público e o privado e entre o teatro e o espectador, por meio da investigação do corpo/instalação e de uma ação não representacional. A criação se dá em uma rede colaborativa, em que as experimentações se retroalimentam através não só de um diálogo constante entre os pesquisadores envolvidos , mas também por meio da participação do espectador/colaborador. São eixos norteadores do Obscena o work in process, a investigação do conceito de instalação/ocupação de espaços públicos e urbanos, a gramática gestual e verbal da atuação rapsódica e a obra do artista plástico Artur Barrio.
Em 2008, os elementos temáticos e poéticos investigados pelo Obscena durante o desenvolvimento do projeto de pesquisa Às margens do feminino: texturas teatrais da beira (contemplado pelo Fundo de Projetos Culturais da LMIC de Belo Horizonte) geraram, além de mostras processuais e fóruns de discussão, realizados ao longo do ano, experimentos cênicos e performáticos, entre eles a intervenção urbana Baby dolls, uma exposição de bonecas, fruto do diálogo entre minha investigação dramatúrgica e as pesquisas atorais de Lissandra Guimarães, Erica Vilhena e Joyce Malta.
Especificamente no que concerne às minhas questões, investigo, dentro do agrupamento, uma escritura processual da qual o suporte material não é mais a folha de papel, mas o espaço da cidade e o corpo. Ao utilizar o termo “escrita performada”, busco uma diferenciação em relação tanto à noção de escrita performática presente nos estudos da performance quanto àquela presente nos estudos literários.
Para os estudiosos da performance, o termo refere-se, em geral, aos ensaios/críticas/registros, em geral autobiográficos, de performances realizadas, os quais funcionam como uma espécie de arquivo, ainda que busquem trazer à tona novamente “a força afetiva do evento performático” ao ultrapassar, em certa medida, o registro lingüístico. Para Ravetti (2003: 41), o “transgênero performático privilegia a voz, quer mostrar o movimento, registrar a ação e produzir efeitos de sensações”. Ao contrário do evento performático, no entanto, a escrita performática pressupõe a existência do suporte de papel e o domínio do código alfabético para sua construção. Nesse sentido, muitas vezes, a escrita performática pode vir a servir “como uma estratégia de repúdio e de clausura das práticas corporificadas que proclama descrever” (TAYLOR, 2002: 20).
Para os estudiosos da literatura, a escrita performática está diretamente alinhada à noção de escritura (Barthes) e ao pensamento do texto como produtividade e construção dialógica (Bakhtin, Kristeva). Para Barthes, a noção de escritura vai justamente (como o transgênero performático) ultrapassar (ela também) os limites ao que a literatura (ou o texto literário, pensado dentro de certa tradição) está submetida, pois, para ele, é “bem possível que a literatura (...) realize sua própria destruição para renascer na forma de uma escritura que já não estará exclusivamente ligada ao impresso, mas será constituída por todo trabalho e toda prática de inscrição” (BARTHES, 2004:99).
Nesse sentido, pode-se dizer que, no caso dos estudos literários, existe uma percepção clara das possibilidades de construção de um “texto” diferente daquele produzido pelo escritor, de um texto mental que se projetaria da mente do leitor, ou, em outras palavras, da existência de uma “performance leitora ou narrativas desmaterializadas – duas expressões para nomear o resultado do embate performático entre texto e leitor – suscitadas pela existência de textos literários abertos e dialógicos” (LEAL, 2008: 06). A escrita performática seria, então, uma espécie de encenação “do si mesmo da palavra para um outro”, na qual a palavra, ou seja, o verbo, “se vê movido por um desejo de se deslocar, provisoriamente, da página impressa e de se inscrever (...a partir de uma escrita outra, realizada pelo leitor) na efemeridade performática da tela da consciência, da imaginação do receptor (LEAL, 2008:01).
Nesse caso, não só a literatura é performática – e só o é quando provoca o leitor à produção de outros textos para além dela, isto é, quando é um “texto de fruição”, nos dizeres de Barthes (2004) – como também é performático aquilo que ocorre entre o texto e o leitor.
Para o teatro contemporâneo, a percepção de que o teatro não se caracteriza pelo universo ficcional que veicula – ou seja, pela possibilidade de se “contar uma história”, de “representar o mundo” – mas que ele é, antes de tudo, uma arte da presença, da relação direta entre o ator e o espectador, foi crucial para deslocar a escrita teatral de sua função mimética.

Hoje em dia é aceito que a escrita teatral, assim como o teatro em forma encenada, não busca mais mimar a realidade, quer dizer, o texto já não almeja possibilitar a construção de uma camada realista em cena, que narre o mundo de forma representativa. É nesse sen¬tido que podemos falar de uma escrita que vai da representação para presentação, ou, como fala Chevallier, o intuito não é mais o possibi¬litar uma percepção realista do evento teatral, onde a percepção intelectual é mais diretamen¬te acionada, mas sim instigar o olhar sobre a presentação, quando então a percepção senso¬rial se torna mais importante .

Essa escrita teatral contemporânea, alguns estudiosos – a partir do conceito de performatividade – denominam como dramaturgia performativa. Para Féral, a performatividade não é uma “propriedade” dos objetos, da ação ou do texto, mas uma dinâmica de relação que investe esses objetos, essa ação ou esse texto performativo.

Tratar um objeto, obra ou produto “como” performance – uma pintura, uma novela, um sapato, ou qualquer outra coisa – significa investigar o que o objeto faz, como ele interage com outros objetos ou seres e como ele se relaciona com outros objetos e seres. Performance existe somente como ação, interações e relações .

Se a performatividade não é uma qualidade inerente ao objeto performativo, o que, então, a caracterizaria? Em primeiro lugar , seu caráter de acontecimento. Decorrente desse traço, se pode dizer que a performatividade evoca a presença concreta do performer, o que parece implicar em uma noção de risco, tanto para o performer quanto para o espectador. Nesse sentido, podemos dizer que ela se traduz, fundamentalmente, como uma experiência, pois o espectador “longe de buscar um sentido para a imagem, deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa” (FÉRAL, 2008: 203). Se, no reino da teatralidade , a obra é pensada como resultado, no reino da performatividade, ela é processo.

Três tapetes. Três nichos de exposição. Três bonecas, monumentos animados das mulheres objetos, convidam os transeuntes a brincar. Mulheres princesas, mulheres noivas, mulheres dóceis. Mulheres mudas. Mas não se engane. Logo, essas bonecas serão mulheres mortas, marcadas a giz no chão.

Também processual, Baby Dolls, uma exposição de bonecas discute a “fabricação” do modelo feminino presente na sociedade contemporânea e vem sendo realizada nas ruas e praças de Belo Horizonte desde outubro de 2008, além de já ter sido realizada no FIT São José do Rio Preto, na MIP 2 - Manifestação Internacional da Performance (BH/MG) e no XII Festival Recife do Teatro Nacional . Quando iniciamos o experimento, a proposta era investigar não só das relações entre o meio social e a mulher, mas principalmente as possibilidades cênicas geradas por essas relações vistas a partir de procedimentos de instalação e de ocupação e da investigação de elementos performáticos e dramatúrgicos, os quais visavam à recuperação da instância narrativa do repertório de matérias textuais utilizadas na criação (notícias de jornal, verbetes de dicionário, bulas de remédio, classificados de prostitutas, listas e rol, placas de trânsito, de obra civil e outras marcas de inscrição do ambiente urbano) e também à utilização do espaço público como uma "prática de invasão da cidade. Essa invasão é uma interferência na lógica da cidade, uma intromissão ao uso cotidiano dos espaços" (CARREIRA, 2008: 69).
Durante as intervenções que realizamos em 2008, muitas questões relativas à investigação de uma escritura no espaço da ação acabaram por se impor: quais as possíveis formas de inscrição textual e qual o lugar do “dramaturgo” dentro do acontecimento performático? Como operar a dramaturgia, no calor da ação performativa, entre um fluxo de leitura (espectador) e um de escrita (autor)? O texto, como elemento material, circunscreve/delimita a arquitetura dos fluxos de ações performativas? Em sua tese de doutoramento, Teatro Brasileiro Contemporâneo: um estudo da escritura cênico-dramatúrgica atual, Da Costa inaugura um conceito que lança algumas luzes sobre esses questionamentos:

A noção de criação cênico-dramatúrgica conjugada se refere ao campo do teatro contemporâneo em que a dramaturgia é construída como script (ou roteiro); muitas vezes como teatralização de textos de outros gêneros literários e discursivos (narrativas de ficção, cartas, diários, relatos de viagem etc.) e se produz em conexão direta com as necessidades, demandas e características específicas de projetos cênicos particulares

Ele considera ainda que “o diapasão conceitual da expressão escritura cênico-dramatúrgica conjugada (...) é dado fundamentalmente pelas idéias de processualidade, de interatividade e de simultaneidade de criações entendidas tradicionalmente como seqüenciadas” (DA COSTA, 2003: 16). Nesse sentido, entendo que os roteiros/relatos das intervenções realizadas (como registros/resultantes textuais das experiências de escritura da ação vivenciadas ao longo da pesquisa) poderiam se constituir, tanto como a ação propriamente dita, como escrituras cênico-dramatúrgicas conjugadas, uma vez que tanto a processualidade como a simultaneidade das criações dramatúrgica e cênica tenderam a atenuar, no processo de experimentação e criação, as hierarquias e fronteiras entre o campo literário (“a reflexão dramatúrgica, a criação verbal”) e o trabalho performativo .
No entanto, para além dos roteiros/relatos, gostaria de pensar nos textos produzidos no calor da ação, a partir do repertório de matérias textuais diversas e das dinâmicas relacionais próprias da intervenção. Esses textos, inscritos nas marcas de corpos femininos (também elas uma forma de inscrição) se caracterizariam como escritura cênico-dramatúrgica conjugada? A idéia de projeto, contida nessa noção, parece, de algum modo, contrapor-se ao fluxo da ação que realizamos (e da escritura que dela se depreende) e, nesse sentido, talvez pudéssemos, antes, caracterizá-los como textos escriturais. Para Barthes, são características do texto escritural: amparo num pensamento que não nega a história, mas está além da historicidade; destruições gramaticais de ordem sintática e morfológica (BARTHES, 2006: 13); (re)construções que provocam instabilidade normativa no seio da estrutura escritural, a possibilidade da “perda do sujeito em gozo, a subversão na e pela linguagem”(BARTHES, 1996: 52); re-escritura ou restauração perpétua do texto; a ausência da narrativa linear, fixa, preocupada em explicar uma história com início meio e fim; um prazer ou gozo na leitura que pode ser atópico (BARTHES, 1996: 35), ou seja, não pode ser fixado por nenhuma mentalidade.

Por que a prancha escova progressiva inteligente jeans da moda o roxo bata pode. Por que o sexo forçado marido namorado um tapinha não dói. Homem faz sexo mulher faz amor lipoaspiração drenagem linfática. Tintura. Depilação epilação hidratação cauterização ballayage plástica botox silicone.
Mulher. Uma obra em construção. Quem é a obra de quem? Não é possível explicar, é necessário construir. Desculpe o transtorno. Estamos trabalhando para você.
Filé. Delícia. Gostosa. Carne de primeira. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca jaca galinha piranha. Mulher melancia. Mulher da vida. Mulher da zona. Mulher da comédia. Mulher à toa. Mulher. A esposa em relação ao marido. Moça que atingiu a puberdade. Samy. 18 aninhos. Morena gostosa. Safada, sapeca como você gosta. 100% completa. Sexo anal total. 69 gostoso. Foto original sem retoque. Gosto de beijar. Amar. Cuidar. Transar. Mesmo sem vontade. Esquecer. Perdoar. Compreender. Sujeitar. Sacrificar. Esquecer. Esquecer. Embalar. Adestrar. Ensinar. Mesmo sem vontade. Educar. Amamentar. Brincar. Parir. Amar. Limpar. Passar. Jogar no rio. Na privada. Na esquina. Na esquina.
Desculpe o transtorno estamos trabalhando para você. Uma obra em construção. Barbies. Pollys. Princess all globe. Bonecas domesticadas pela TV. Hidratantes. Desodorantes. Perfex. Batom. Antiaderente. Drenagem linfática Jet bronze endermologia com arte é diet light in out enterrada menina de 14 anos encontrada morta e estuprada. Metida. Fodida. Arregaçada. Como você gosta.
Cerveja. Boa. Gostosa. Gelada. Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne .

A partir das questões suscitadas pela investigação em relação ao corpo da mulher – mas também dos objetos do "universo feminino", dos discursos do poder e da polifonia dos cartazes, classificados e notícias que têm nele o seu centro – sua exposição nos espaços públicos da cidade tem se mostrado como acontecimento capaz de provocar olhares e reflexões sobre a construção de uma identidade feminina ainda pautada nos ditames de uma sociedade machista e patriarcal, em que a mulher é colocada como objeto de destruição e consumo.
Ao se instalar objetos e corpos femininos na cidade, também instala-se uma obra em construção. Como esses elementos cartografam o corpo da cidade? Que tatuagens se inscrevem? Como o espectador-transeunte lê as imagens produzidas e se relaciona com elas? O que sobra dessas presenças no espaço: restos, rastros, memórias? E as impressões dos habitantes que participaram da ação? Quanto tempo dura o efeito e as marcas desta ação no corpo da cidade? O que ela provoca?
Segundo Clóvis Domingos – que acompanhou a intervenção realizada em dezembro de 2008, na Praça Sete, e permaneceu no local para registrar o “depois” da ação – quando deixamos rastros de corpos escritos, cria-se uma CENA e os transeuntes tornam-se espectadores para acompanhar o ACONTECIMENTO. Escutam-se as pessoas: "é gente doida, mulheres que não gostam de homem, mulheres chamando atenção". Para ele, quando as atuantes abandonam o espaço, elas deixam uma "escritura da presença" no mesmo e um fórum de discussões se inicia entre as pessoas que leram o texto grafado no chão. Fala-se de tudo: violência, política, corrupção, o que é ser mulher, a covardia dos homens etc. É ele quem diz:

Começo a marcar o tempo e por meia hora a presença escrita no chão causa fatos e conversas. Um debate sobre a violência contra a mulher. Vejo moças vendedoras de ouro debatendo o trabalho com soldados e o melhor, uma moça se torna uma ATUANTE e passa a explicar o que entendeu para eles. Segundo ela, "é preciso ler de baixo para cima..assim se entende o texto. Meu filho, eu sou loira, mas não sou burra..." E na explicação dela, aquela "grafia", quase um objeto escrito, ganha mais VISIBILIDADE e cria interrupções variadas. Todos que param recebem explicações dela sobre o que aconteceu e o que significa tudo aquilo. Ela chega a pisar sobre o texto e fazer daquele "espaço escrito", um espaço cênico atraindo a atenção das pessoas... Depois escuto mulheres relatando que já apanharam de homens e falando da Lei Maria da Penha... O fato é que a obra não cessa de causar reações e debates .

Percebida a potência absoluta da fenda que produzimos entre as margens do sentido, optamos por realizar a ação mais algumas vezes na Praça Sete e em outros espaços públicos da cidade, buscando sempre lugares de fluxo intenso de pedestres (como a Praça da Rodoviária, as saídas de estações do metrô, proximidades da Praça da Estação). As possibilidades múltiplas de interpretação da nossa ação – “é protesto?” “Isso é alguma propaganda ou pegadinha”, “Ah, é teatro” – levavam os corpos a permanecerem ali, leitores do acontecimento, em busca de significados que permaneceram ocultos. Pois, se o acontecimento não é da ordem do corpo e o discurso está para além do verbal, que texto (escritura) é este que se imprime no corpo da cidade?
Já em 2009, realizamos mais três intervenções na Praça Sete, em 25 de abril, 16 de maio e 05 de junho. Em seguida, começamos o circuito de viagens com o experimento e realizamos, em julho, os festivais de São José do Rio Preto e de Ouro Preto e Mariana. Em agosto, de retorno a Belo Horizonte, realizamos uma intervenção pela MIP2, novamente na Praça Sete e uma segunda, em setembro, na Praça da Estação. Em novembro, partimos para o Recife.
Uma semana em Recife, realizando Baby Dolls pelas regionais da cidade e experimentando, pela primeira vez, realizar o workshop “como se fabrica uma mulher?” exclusivamente para mulheres e com a participação de Joyce e Erica: pela primeira vez friccionando nossos materiais também no resguardo de uma sala.
Em Pernambuco, de janeiro a outubro deste ano, 291 mulheres foram mortas. 95% dos seus agressores foram homens, sendo 70% companheiros ou ex-companheiros, maridos ou ex-maridos, noivos, namorados. 70% destas mulheres foram mortas por homens que diziam amá-las. Pernambuco é, hoje, um dos estados nos quais mais se mata mulheres no Brasil. No Recife, embora haja 100 mil mulheres a mais que homens, temos a impressão de predominância masculina. As mulheres, não as vemos tanto pelas ruas. Não as vemos tanto pelos bares, desacompanhadas.
Sandra, atriz gaúcha que há seis meses mora em Recife e que foi uma das participantes do workshop, levou, no segundo dia, um cinzeiro e uma lata de cerveja entre os objetos do “universo feminino” que escolheu para realizar o trabalho conosco. Ela relatou que, ao sair do nosso trabalho no dia anterior, resolveu entrar num bar, sozinha, pra tomar uma cerveja e fumar um cigarrro. Era a única mulher do lugar. Uma estrangeira, alienígena.
No Recife, a população que transita livremente é a masculina. Apesar disso (e, talvez, em razão disso mesmo), nunca as mulheres foram tão cúmplices de nós. Lá, a realidade é mais dura. Não é possível fingir que está tudo bem, que somos emancipadas e que o feminismo é um movimento arcaico e obsoleto. Em Recife, não é possível ignorar o machismo e fingir que somos donas de nosso próprio corpo e da nossa vontade. No primeiro dia do workshop, quando realizamos a caminhada performática pelo Recife Antigo, Andala (atriz recifense) se postou numa esquina. Do outro lado, ao meu lado, um grupo de homens a olhava e um dizia: “Aquela ali tá querendo homem. Vou arrumar um pra ela”. Outros ameaçavam colocar moedas no “cofrinho” de Erica que, abaixada, registrava tudo. No Recife, a hipocrisia mineira que permite às mulheres de Belo Horizonte achar, no reverso de narciso, que feio é o que é espelho, não tem solo para grassar.
No entanto lá, como em Belo Horizonte, a potência dessas mulheres unidas desarranja, desconstrói, destrói, desordena. Sentimos essa força na Rua da Imperatriz (na primeira intervenção), quando as mulheres do grupo Loucas de Pedra Lilás aplaudiram Joyce ao vê-la arrancar a peruca loira e revelar seus cachos negros. Sentimos sua força em nossa caminhada performática pelo Centro do Recife Antigo e a sentimos no mercado de Casa Amarela, quando alteramos nossos desenhos e relações, fortalecendo nossas imagens e bagunçando os sentidos de quem transitava por lá (pela primeira vez, senti o impulso real e a cumplicidade necessária – o desejo – daquelas pessoas de compartilhar da escrita. Corpos vazios foram preenchidos por outras mãos armadas de giz). Essa mesma força, senti também na intervenção realizada na Praça da Várzea, quando as mulheres avançaram, tomando posse do giz e dos corpos. Potência Performática.
Realizar uma ação interventiva no cotidiano social, com a perspectiva de provocar uma atitude ativa do espectador diante do acontecimento cênico-performativo. Em uma sociedade em que se multiplicam mulheres comida (mulher melancia, mulher jaca, mulher filé, mulher caviar), em que as mulheres, como propriedades e objetos, são cada vez mais mortas, excomungadas e transformadas em bens de consumo, o transeunte/espectador, sem uma resposta clara e um entendimento imediato do que se passa, é obrigado a parar e interagir com a ação que visa destruir os estereótipos que se reproduzem e desorganizar as imagens dadas.
Entendo essa escrita performada, produzida em processo, como fruto de uma dimensão coletiva e ligada intrinsecamente ao acontecimento, à ação concreta e as relações possíveis entre atuantes e transeuntes/espectadores. A ambigüidade, a pluralidade e a subjetividade encontram espaço propício para desenvolverem e, com isso, renovam-se em movimentos em direção a um fim que é, muitas vezes, o próprio texto. Aqui, a escritura renova-se incessantemente.









Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1996.
________________. Inéditos, I: teoria. Tradução Ivone Castilho Beneditti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
________________. Inéditos, II: crítica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
________________. O prazer do texto. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006.

CARREIRA, André. Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade. IN: LIMA, Evelyn F. W. (org.). Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 letras, 2008.

DA COSTA FILHO, José. Teatro brasileiro contemporâneo: um estudo da escritura cênico-dramatúrgica atual. 2003. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

DA SILVA, Heloisa Marina e BAUMGÄRTEL, Stephan Arnauf. Possíveis processos da escrita teatral contemporânea IN: Revista DAPesquisa, volume 3, número 2 (ago/2008 a jul/2009). CEART/UDESC.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. IN: Revista Sala Preta. São Paulo (ECA/USP), 2008.

LEAL, Juliana Helena Gomes. Escrita performática latino-americana contemporânea. Anais do XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, interações, convergências (USP, julho de 2008). Texto disponível em: http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/068/JULIANA_LEAL.pdf

RAVETTI, Graciela. Performances escritas: o diáfano e o opaco da experiência. IN: HILDEBRANDO, Antônio, NASCIMENTO, Lyslei e ROJO, Sara (org). O corpo em performance: imagem, texto, palavra. Belo Horizonte: NELAP/FALE/UFMG, 2003.

SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. New York & London: Routledge, 2006.

TAYLOR, Diana. Encenando La memória socila: Yuyachkani. IN: RAVETTI, Graciela, ARBEX, Márcia (org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: POSLIT/FALE/UFMG, 2002.
Sites visitados:
www.obscenica.blogspot.com
www.obscenica.ning.com

terça-feira, 10 de novembro de 2009

a puta da faculdade


num país em que mulheres se tornam famosas pelo tamanho de suas bundas, em que "cachorras" dançam funk sem calcinha, em que gringo vem fazer "turismo sexual", em que somos ensinadas a sermos burrinhas e gostosas de rosa, muito me admira que justamente uma loira gostosa de rosa seja quase linchada na faculdade porque usava um vestido curto. queria entender o mecanismo medieval de repressão coletiva que lá se deu.
o que, efetivamente, causou tal comoção? o que leva uma "malta" de estudantes de direito (ironicamente) a saltar por cima da lei e resolver decidir pessoalmente suas questões morais?
em uma avalanche quase muçulmânica, pessoas de "ambos os sexos" agrediram verbalmente (só não chegando ao físico porque a moça foi protegida, escondida e escoltada por alguns seres humanos presentes) uma mulher que estava se vestindo de maneira considerada inadequada. por que essa moça tornou-se uma espécie de bode expiatório de todos os pecados? qual a sua "culpa"?
o panorama se agrava se juntarmos ao quadro geral outros acontecimentos: "nas últimas 24 horas, 3 mulheres foram assassinadas em crimes passionais" li em um jornal no último sábado. talvez vocês não saibam, mas tenho a mania mórbida de colecionar notícias de mortes, estupros e outras violências contra mulheres e crianças... enfim.
com isso, tenho na minha cabeça uma noção quase estatística da quantidade de mulheres que são mortas, todos os dias, nesse país. é assustador. é assustador (e meu coração quase parou de medo) o que aconteceu nessa faculdade nesse dia com geisy, a estudante que quase foi linchada por dezenas de pessoas no último fim de semana.

minha mente vertiginosa não pode deixar de imaginar que não seria exatamente uma surpresa ver, em breve, essa mesma geisy recebendo convites para posar nua... essa mesma geisy, caso tope, se tornando famosa e sendo recebida com sorrisos... não seria mesmo de se espantar (e nada mais causa espanto, como diria uma antiga música dos titãs) que essa mesma loira se tornasse famosa posando nua para uma famosa revista masculina justamente nos corredores da faculdade que a expulsou... e que ela tivesse que ser protegida, escoltada - mas não escondida, com certeza - não porque as pessoas quisessem bater nela. sendo famosa, as pessoas vão quer incomodá-la, invadi-la, possui-la. as pessoas vão querer sua foto, seu toque, seu sorriso, seu autógrafo. as pessoas vão querer se sentir, minimamente ao estar perto dela, que são famosas também. basta um toque de midas.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

A performance morreu? Antes ela do que eu

a performance se tornou um modo do artista falar dele mesmo

(Josette Féral)



Nos últimos meses, Belo Horizonte foi cenário de mostras e festivais centrados na apresentação (e discussão) de performances, como a Mostra Internacional Horizontes Urbanos, a MIP 2 – Manifestação Internacional de Performance e o Festival de Performance de BH. A coincidência deste momento com a presença, no Brasil, da professora canadense Josette Féral, teórica especializada no estudo da cena contemporânea e que tem trabalhado com o conceito de teatro performativo, levou-me a levantar a discussão em torno de algumas questões tocadas por ela na série de cursos – Teoria e Prática do Teatro: além dos limites – que ministrou em agosto último no Programa de Pós-Graduação em Teatro da Escola de Comunicações e Artes da USP.

Para Féral, falar de performance, hoje, é fazer a “autópsia” dessa arte. Segundo ela, a performance deixou de ser uma manifestação transgressora – porque uma forma esvaziada de seu caráter ideológico – para se tornar um gênero cênico com características formais específicas a ser manipuladas em favor da expressão do artista. Evidentemente, o que está sendo colocado em questão não é a potência expressiva da performance (não se pretende negar ao artista o “direito” de ter em sua arte um meio de expressão), mas o fato de que a performance, que nascera justamente de um forte questionamento do valor da representação e da arte, assuma aspectos daquilo que, inicialmente, ela mesma colocara em crise. Ou seja, ao que chamamos de performance hoje?

Partindo dos estudos de Schechner (Performance Studies) e Huyssen para conceituar performance e tentar apontar quais seriam os seus elementos originais, Féral vai afirmar que estes, precisamente, não estão mais presentes nas manifestações performáticas da contemporaneidade. Inclusive o fato de existir festivais ou mostras nos quais se apresentam performances programadas e, muitas vezes, repetidas e repetíveis, já é, para ela, uma demonstração de sua tese, uma vez que a performance é caracterizada, justamente, por seu caráter de acontecimento.


De fato, no cerne da noção de performance reside uma segunda consideração, a de que as obras performativas não são verdadeiras, nem falsas. Elas simplesmente sobrevêm. “As play acts, performative are not ‘true’ or ‘false’, ‘right’ or ‘wrong’, they happen”, disse Schechner (FÉRAL, 2008: 203).


Esse caráter “eventual” da performance parece implicar em várias outras questões. Como conseqüência imediata, podemos dizer que há uma recusa de todo elemento ensaiado, de tudo o que possa ser realizado novamente. Se nos remetermos às experiências mais extremistas de performance, ocorridas no anos 70 e 80, vamos perceber, em diversas delas, ações que não podem ser refeitas, como as mutilações presentes nas bodies arts. Decorrente desse traço, ocorre que a performance parece implicar em uma noção de risco, tanto para o performer quanto para o espectador. Nesse sentido, podemos dizer que ela se traduz, fundamentalmente, como uma experiência, pois o espectador “longe de buscar um sentido para a imagem, deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa” (FÉRAL, idem). Além disso, como a performance, em essência, questiona, como já foi dito acima, o valor de representação da obra de arte (nesse sentido, há, nela, uma recusa da mimesis) e o seu valor como arte, decorre que, resultante desse primeiro traço, há, na performance, pouco interesse em se pensar, historicamente, como gênero. Logo, há pouco interesse no registro, em guardar sua própria memória. A performance afirma, na ausência do traço, do registro, a ausência da obra, daquilo que possa ser comercializado.
Para Féral, a performance perdeu, hodiernamente, seu valor de experimentação: ela tem uma forma acabada, é repetida, filmada e vendida. Para ela, é característica deste movimento da performance o fato dela, hoje, se preocupar bem menos com o processo (este é escondido do público) e mais com a produção de uma obra acabada: o tempo já não é colocado em questão. Também o corpo – que tinha papel preponderante no início – vai se tornando um elemento como qualquer outro. A imagem vai tomando seu lugar. E, ironicamente, a performance que tinha questionado o uso dos espaços convencionais, a eles retorna: retorna ao palco e à galeria.
Essa foi, pelo menos, uma parte da configuração das mostras e festivais ocorridos em Belo Horizonte nos últimos meses. Performances – muitas vezes de forma contrária ao seu projeto original – tinham seus tempos, horários e locais de realização determinados pela organização dos eventos, em consonância muito mais com o interesse de seus patrocinadores e apoiadores. Mais do que garantir o caráter de risco da performance – potencializando sua interferência no cotidiano do cidadão e sua ação política – pareceu interessar aos organizadores, de uma maneira geral, garantir o acesso de um público especializado que pudesse fornecer ao evento sua chancela de cultural. Ora, se uma performance se vê restrita a ocupar um espaço determinado não por suas próprias necessidades (de acordo com seu projeto poético), mas por contingências do evento do qual faz parte (o mesmo ocorrendo com seu tempo de apresentação – comprimido em função das necessidades da mostra ou festival de criar um amplo painel ou uma amostragem – e com seu horário), ela se encontra “desinvestida” de todos os elementos que a caracterizam como performance – isto é, como uma manifestação de caráter experimental e eventual – e que a conectam às suas possibilidades políticas. Nesse sentido, o pensamento que rege eventos dessa natureza parecem mais dimensionar a performance no mercado da obra de arte, a qual pode ser “comprada” para ser “exposta” ao público, do que em sua vanguarda.
Pensando mais especificamente no teatro do que na performance, Lehmann vai afirmar que, em relação ao teatro pós-dramático (ou performativo, na concepção de Féral), a possibilidade de ação política está relacionada com o seu modo de representação, isto é, na medida em que ele “impõe seu caráter de acontecimento”, em que ele “manifesta a alma do produto morto, o trabalho artístico vivo, para o qual tudo permanece imprevisível e está para ser inventado”. Ou seja, “o teatro é virtualmente político segundo a concepção de sua prática” (LEHMANN, 2007: 414).
Sabemos que a performatividade não é uma “propriedade” dos objetos, da ação, mas uma dinâmica de relação que investe esses objetos ou essa ação. Ocorre então que, se é necessário, para o teatro, hoje, dar um salto em direção à performatividade, também parece ser necessário, ironicamente, que a performance volte a saltar no escuro.



Referências Bibliográficas

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. IN: Revista Sala Preta. São Paulo (ECA/USP), 2008.
LEHMANN, Hans-Thies. O Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. New York & London: Routledge, 2006.
____________________________. The End of Humanism: writings on performance. New York: Performing Arts Journal Publications, 1982.

sábado, 27 de junho de 2009

sem juízo (menção honrosa no Prêmio Off Flip 2009)

sem juízo

O despertador toca. 05h15min da manhã. Vai começar tudo de novo. Ela abre o olho. Levanta-se. A roupa pendurada na cadeira. Desde a noite anterior. Tudo organizado. A blusa branca de botões. O sapato preto. Tudo organizado.

Loira. Vinte e oito anos. Nem bonita nem feia. Secretária. Eu gostaria que a senhora me fizesse um pequeno relato sobre o caso.

Sempre pegava o metrô às 06h20min. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Alguma coisa aconteceu. Entre as 05h15min, quando despertou, e o momento em que devia pegar o metrô. Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela. Ela respira fundo, atravessa a rua. Toma um café na lanchonete da esquina e fuma um cigarro.
A lanchonete estava lotada, mas ninguém me via.
Era sempre assim. Era sempre a mesma coisa. Eu estou numa calçada que faz parte de uma rua que faz parte de um quarteirão que faz parte de um bairro que faz parte de uma cidade que faz parte de um estado que faz parte de um país que faz parte do mundo! Eu grito e ninguém me escuta. Eu espero um milagre.

Os fatos. Vamos aos fatos.

Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo daria certo. Sempre pegava o metrô às 06h20min. Sempre. Descia do metrô. Atravessava a rua. Tomava um café na lanchonete da esquina. Fumava um cigarro. E batia o cartão. Às oito horas em ponto.
Eu só estava um pouco atrasada. Sempre pegava o metrô às seis e vinte. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Às cinco e meia ela terminou o banho. Colocou a roupa. Passou o batom. Adora batom vermelho, mas passou um rosa. Nem bonita nem feia. Secretária. Lera isso em algum lugar? Ela sempre quis ser linda. Modelo. Atriz. Bailarina.Tudo tem que ser a mesma coisa. Tudo igual. Tudo em seus devidos lugares. Tudo em pratos limpos! Desde a noite anterior. Ela respira fundo. Pausa.
Ela tinha saído de casa às seis da manhã como todo dia. Mas hoje ia ser diferente. Tinha que ser diferente, pois mais um dia como aquele iria matá-la.

O que a senhora quer dizer com isso? A senhora confessa?

Ela esperava um milagre. Alguma coisa que entrasse no seu caminho de maneira irremediável. Ela devia pegar o metrô às 06h20min. Fechou a porta, desceu as escadas. Cruzou a esquina.
Ainda estava escuro. Um homem na rua deserta. Seria o príncipe encantado que iria salvá-la? Desviou, sumiu de vista. Gostava de ver a cidade naquela hora. Naquela hora, parecia que tinha outra cidade por baixo da cidade. Uma cidade invisível.
Eu preciso fumar um cigarro. Eu tinha que bater o cartão às oito horas em ponto.

Vamos aos fatos? A senhora saiu às seis horas da manhã.

Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo. Do começo. Vou começar do começo. Digo, ela. Ela vai começar tudo de novo.
Ela acorda sempre um segundo antes do despertador tocar. O despertador toca. Ela abre o olho. A roupa está pendurada na cadeira. Ela gosta de tudo organizado.
Acorda! Acorda!
O que esta corda está fazendo aqui? Não é a mesma coisa! Não tinha a corda... Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela. Ela precisa fumar um cigarro!
Era sem “acorda!”. Não é a mesma coisa! Não é a mesma coisa. Um cigarro. Alguém me dá um cigarro?

Os fatos! Prossigamos.

Ela esquecia as palavras, se perdia... Desculpe, é o stress. Eu já disse que ela era frígida?

Mas disso não consta uma só palavra na acusação. Como devo julgar?

Tudo tem hora e lugar. O seu lugar. Cada coisa em seu lugar.
Ela era do tipo frígido. Ela já tinha tentado de tudo, até amante. Mas também com ele tudo logo soou programado. As mesmas horas de traição. O mesmo sexo oral anal sempre com ele como nunca fazia com o marido. As sempre mesmas ousadias pequenas.
Ele.
Ele sempre pega o metrô às 06h20min. Ele. Sempre. Desce do metrô. Ele atravessa a rua e toma um café na lanchonete da esquina.
Ela também entra na lanchonete. Ela também tem fome.
Às 05h30min ele acaba o banho, coloca a roupa. Blusa branca, de botão. Sapato preto. Ele gosta do vermelho. Ela vê o batom surgindo na frente dela. Ele adora passar o batom. Ela não é bonita. Mas fica linda de batom vermelho. Ele machucou ela. A boca. Na quina da cama. Digo, ela. Ela machucou a boca na quina da cama. Vermelho. Tem que ser vermelho. Sorri um sorriso machucado. Puta.
Ela entra no escritório. Cumprimenta a colega: “Obrigada pelas flores!”. Vai até o banheiro. Senta-se na privada e digita. Um belo texto. Um texto imaginário. Maravilhoso. Cheio de palavras que ninguém conhece. Vaca. Puta. Puta.
Volta ao escritório. Cumprimenta a moça do café. Servimos bem para servirmos sempre. As folhas amarelas são requerimentos. As verdes vão para a contabilidade.

Mas o que é isso, onde estão os papéis? Não consta nada disso! Vamos aos fatos!

Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo. Tudo vai dar certo!

É fácil dizer isso. Mas eu tenho de conduzir um interrogatório. Hoje em dia, não é fácil saber onde está a justiça. Eu já li isso em algum lugar? Vamos aos fatos. Foi um dia normal? A senhora tinha feito suas obrigações?

Até o milagre acontecer ela não podia fazer nada. A não ser comprar uma calcinha de renda vermelha. Tinha visto uma na promoção do dia dos namorados. Torcer pro sexo ser um pouquinho diferente, pois há muito era o mesmo. Nunca mais as mesmas coisas. Lavar. Passar. Amar. Transar. Mesmo sem vontade. Parir. Amar. Amamentar. Aquecer. Esquecer. Amar. Sacrificar. Apanhar. Sujeitar. Compreender. Esquecer. Esquecer. Perdoar.

Afinal de contas, qual foi o crime?

Sua vida não tinha poesia. Ela era invisível. Sempre foi. Ninguém a via, ninguém a escutava. Sempre as mesmas coisas. Aquilo dava um aperto no coração.
Mas hoje não. Hoje, alguma coisa aconteceu. Ela entra no prédio. Elevador panorâmico. Primeiro, segundo, terceiro, Sétimo andar. Cabalístico. Ela pisa o parapeito. Ela espera um milagre. Seu corpo bailarino flutua um momento no ar.
No chão, os papéis espalhados. A meia calça rasgada. Onde está minha estrutura sólida? Onde está o chão sob os meus pés? O que me sustenta? O que eu posso sustentar?
Ela muda. Dócil. Gelada. Como ele gosta.

Onde está a pasta com a acusação? Preciso dela. Preciso saber quem são os acusados. Isso é meu ou li em algum lugar? Como posso saber? Afinal de contas, qual foi o crime?

A gente só devia conhecer o que vive. Eu tinha sonhado com um enterro cheio de gente, flores, choro. Um enterro digno. Ser alguém uma vez na vida. Mas ninguém me vê. Digo, ela.
Ela devia ter tomado o metrô. Às 06h20min. Mas ela ainda não entrou na estação. Ela está molhada. Ela não se levanta. Loira, 28 anos, sem calcinha. Jogada num beco escuro ordinário. Ele veste a roupa. A loira não fala nada. Como ele gosta. Ele. Ele.
Que horas são? Que corda é essa, na sua mão?
São 07h30min. Ela ainda não pegou o metrô. Alguma coisa se quebrou. E quando uma coisa se quebra não há mais conserto. Aquilo está quebrado para sempre.
Alguém pode me dar um cigarro? Um cigarro?

terça-feira, 14 de abril de 2009

O tempo, o gelo e o drama

Primeiro de abril. Galpão Cine Horto. Platéia lotada. Dir-se-ia uma estréia. Mas não era. Estávamos ali para assistir à apresentação de uma obra em processo de construção, fruto da investigação conjunta de dois jovens – e importantes – grupos da cena brasileira: o mineiro Espanca! e o paulista Grupo XIX. A parceria, iniciada em 2007 com o ACTO 1, projeto de intercâmbio entre os dois grupos e o curitibano Cia. Brasileira, se desdobrou em uma residência artística de 3 meses do grupo mineiro na sede do grupo paulista para o exercício de invenção que resultou em Barco de Gelo.
Ao adentrarmos o teatro, os atores de ambos os grupos – todos de branco – e o diretor (Luiz Fernando Marques, este, do Grupo XIX) nos recebem em meio à euforia geral e à acomodação da imensa platéia pela produção da casa. Afinal, estávamos em uma espécie de ensaio aberto, momento de compartilhamento com o público do trabalho, para um posterior debate. Prática constante do Grupo XIX, a abertura do processo de criação ao espectador ocorre desde o primeiro mês de trabalho e perpassa todas as etapas de criação, das primeiras pesquisas ao resultado final.
O diretor anuncia o propósito do encontro e pede ao técnico de som que solte o spot. A atriz Janaína Leite, que inicia o trabalho, se dirige para o cenário todo roxo, colocado em um ângulo enviesado em relação ao público. O estranhamento já começava ali.
Ela aguarda, seis taças de champagne penduradas em seus dedos. Alguém bate à porta. Ela parece não ouvir. Alguns segundos depois, ela reage. O tempo está em delay. Principal recurso dramatúrgico da cena/exercício, esse atraso/descompasso temporal marcará o descompasso das relações entre os personagens que vemos em cena. O casal, o amigo eufórico e o potencial suicida – talvez o único para quem a percepção clara da realidade e do presente torne a vida difícil de ser vivida. O tempo, metáfora maior do tema/situação que se desenrola no palco, é magistralmente orquestrado pelo contraste/curto-circuito que ocorre entre o tempo da “realidade”, localizada em um futuro longíquo, 2440, e o tempo da ilusão: a festa do réveillon – imagem concreta de um futuro que só pode vir como projeção – culmina na apresentação de um trecho de As três irmãs, de Tchekov, por uma trupe de teatro. Único momento em que as relações se dão no mesmo tempo, no agora, no presente, o teatro – artefato arcaico, obsoleto e anacrônico já hoje – contrasta com uma atualidade fragmentada e desconexa, tornando visível o que estava latente nas relações marcadas pelo delay.
Barco de Gelo foi uma grata surpresa. Não que seja surpresa a qualidade inerente aos dois coletivos teatrais, mas a força de provocação com que a estrutura mínima dessa dramaturgia tecida colaborativamente e ainda em processo de criação e aprofundamento, concretiza as imagens/idéias teatrais germinadas nesse encontro de criadores que revisitam suas formas e métodos, que desejam o risco.
Essa estrutura mínima – futuro e passado, arte e vida, tema inscrito na linguagem – é provocadora na medida em que não se contenta em reproduzir formas já conquistadas, mas, principalmente, provocadora para os sentidos daqueles que estão acostumados a pensar o teatro em termos de drama, de desenvolvimentos causais e de sentidos amarrados e prontos. Não, nada aqui será entregue de graça. Aqui, como o gelo que traduz tão poeticamente a idéia de um presente que está e que já não está lá, a linguagem desliza, subtrai-se e fura a representação porque na cena contemporânea o verbo já não tem a primazia de produzir poesia.
Nina Caetano

terça-feira, 17 de março de 2009

Para pensar uma dramaturgia in process ou Pode ser a escrita de rua uma dramaturgia do instante? ou Performando a dramaturgia

“Somos irreversíveis e incontornáveis.”
(Hosana, marcha mundial das mulheres)


Neste ensaio, intentarei discutir o trabalho realizado ao longo do ano de 2008 junto ao Obscena, agrupamento independente de pesquisa cênica. No âmbito desse trabalho, a minha questão principal se relaciona com a prática de dramaturgia que tenho proposto dentro do agrupamento e que nomeei, em alguns momentos, como “Dramaturgia do instante”, consistindo na pesquisa de uma escrita no espaço da ação. Evidentemente, tal denominação e ação não foram dadas de antemão e só estão se esclarecendo ao longo do percurso de investigação, como denota o título que proponho para este ensaio. Inicialmente, quando começamos o trabalho de pesquisa, em fevereiro de 2008, eram claros para mim somente os elementos os quais desejava investigar. Remeto ao relato do dia 25 daquele mês:

Eu, Nina, me interesso por pesquisar a edição documental, a intervenção no real, os labirintos temporais, a memória. A construção da mulher. Uma anatomia, para lembrar o Moacir, construída com objetos normalmente ligados ao universo da mulher. Interessa a mulher que transborda, que escapa às fôrmas, me interessa a loucura. O que cabe e o que não cabe.

Naquele momento, inclusive, ainda não havia a clareza de que modo eu poderia desenvolver a pesquisa desses elementos dentro de um agrupamento – e de um projeto – que privilegiava, de certo modo, a instância atoral. Outra questão dizia respeito ao modo como seria possível tecer esta dramaturgia na relação com os materiais dos outros, uma vez que não intentávamos a criação de um espetáculo, mas resultantes cênicas decorrentes das investigações individuais.
Em seu primeiro ano de existência – 2007 – o Obscena havia trabalhado no espaço que pertencia à companhia de teatro da qual fazia parte Lissandra Guimarães e eu, a Maldita. Naquele ano, ainda integrantes da companhia e em pleno processo de criação, as investigações que fazíamos no Obscena (criado, inicialmente, como um grupo de estudos e de diálogos para a Maldita) acabavam por desembocar, como criação, no grupo de origem. As questões levantadas acima eram, então, incipientes, uma vez que, para mim, utilizar o meu corpo na ação era um meio de concretizar propostas de dramaturgia que seriam, posteriormente, desenvolvidas como ações pelos atores.
Em função do interesse específico na criação da Maldita, o Obscena começou o estudo por algumas balizas que sustentavam aquele processo em andamento: além dos princípios da criação colaborativa, a linguagem épico-dramática e a discussão dos conceitos de ocupação e de instalação. Como base teórica, havia o interesse em investigar as idéias contidas no epílogo da obra O Teatro Pós-Dramático[1], principalmente no que concerne às possibilidades contemporâneas de um teatro de viés político. Como, na Maldita, havia a confluência entre as questões de ordem estética e questões ideológicas, relacionadas às estruturas de poder, como as instituições – na criação de seu primeiro espetáculo a pesquisa da Maldita havia sido as instituições manicomiais e, no processo que se desenrolava, as prisões – pareceu-nos essencial também aprofundar nesse ponto.
No entanto, na Maldita o processo de criação – que já se desenrolava há quase dois anos – havia emperrado e não permitia uma real vazão de nossos experimentos ou desejos, o que nos levou, Lissandra e eu, a sairmos da companhia e nos dedicarmos inteiramente às questões férteis que haviam surgido no grupo de estudos. Nascia assim o projeto Às margens do feminino: texturas teatrais da beira. Formulamos o projeto e o apresentamos para a Lei Municipal de Incentivo à Cultura. Aprovado no Fundão, o projeto nos deu condição de aprofundar a pesquisa, agora centrada na investigação de alguns elementos de linguagem que já vinham sendo tocados – tais como um modelo não representacional de ações, a atuação rapsódica e a instalação/ocupação de espaços públicos e privados – e em um tema recorrente nos experimentos desenvolvidos no agrupamento: a mulher[2].

segunda-feira, dia 03 de março de 2008. o que é ser mulher?
Fortaleza fragilidade mãe mulher companheira doçura esteio=sustentação da família Geradora de vida. Amor. Carinho. Benção. Ser divino. Luz do Mundo.
Ser mulher é ser como sempre uma escrava de quase tudo. Sou feliz como mãe. Como mulher não.
Ser mulher é muito importante porque ela é a Rainha do Lar.
Ser mulher tem que ter responsabilidade com a família, com o esposo. Ser mulher vem da responsabilidade desde o dia da gravidez porque todos dependem da mulher.
A mulher cuida das crianças, dos filhos, da casa. É dar respeito para ser respeitada.
Ser mulher pra mim é saber se calar mesmo querendo extravasar. É ser forte, mesmo nos momentos de dor.
Ser mulher é ser dona de casa, ser mãe de família, ser paciente, ser cuidadosa, ser conselheira, ser trabalhadeira, ser cuidadosa, ser bonita
[3].

Em março, as questões que eram incipientes no trabalho desenvolvido no ano anterior, começaram, a partir das experimentações de procedimentos atorais que nortearam a primeira fase dos trabalhos, a tomar mais (o meu) corpo.

Percebo o quanto é importante estar atenta aos elementos de minha própria pesquisa. O que norteia, individualmente, o meu trabalho no grupo? Quais podem ser os elementos da minha atuação dramatúrgica? Como olhar meu corpo ator como dramaturga? Ou como dramaturga utilizar meu corpo texto? Como dialogar a partir desse corpo?[4]

Em abril, acontece a primeira mostra em processo da pesquisa, prevista pelo projeto. Os pesquisadores do Obscena propuseram, cada um, procedimentos diferentes no qual contavam, muitas vezes, com a participação dos outros em sua investigação. Se, por um lado, a necessidade de colaborar, como corpo, na proposta do outro me lançou muitas dúvidas em relação ao desenvolvimento da minha própria função de dramaturga, por outro começou a abrir outras possibilidades para essa dramaturgia, não mais pensada como estritamente ligada a um suporte de papel. Para exemplificar, cito a proposta de Marcelo Rocco, A vitrine de corpos prostituídos, realizada no primeiro dia da mostra, sábado 12, à meia-noite.
Marcelo havia solicitado a todos nós, mulheres e homens, que assumíssemos o lugar de prostitutas e michês. Nossos corpos, seminus, seriam “oferecidos” na vitrine do Teatro Marília, a qual dava para a rua. Uma vez que não sou atriz e não queria representar nenhum personagem, aceitei colocar o meu corpo seminu na vitrine, mas com uma ressalva. Eu não iria seguir os seus comandos, mas exercitar, de dentro da vitrine, as possibilidades de diálogo com o público pela escrita que eu imprimia na vitrine e nos corpos dos outros atuantes. Concentrei-me em perceber a reação do público, que aumentava a cada minuto. Os olhares ávidos masculinos, que variavam entre o desejo e a repreensão de nossa ação. Os escritos também variavam, daquilo que eu percebia como “pensamentos” deste público, a um discurso mais crítico: além de puta, vaca, filé, vadia, gostosa, galinha, mulher, frases como carne no açougue e mulher vende cerveja.
Além da escrita experimentada na vitrine do Marcelo e em decorrência dela, propus, em diálogo com os materiais atorais desenvolvidos por Lissandra em torno dos objetos do universo feminino, a realização de uma ação – esta mais concatenada com os meus objetivos e temática – na qual se tornou mais evidente para mim a construção de uma dramaturgia do instante a partir de um olhar de autora-espectadora[5].

Dona de uma flexibilidade invejável no trato caseiro, Vaca Maravilha é o sonho de consumo de todo homem, seja ele clássico ou contemporâneo. Na terça-feira, dia 15 de Abril de 2008, algumas pessoas, transeuntes da Avenida Alfredo Balena no centro da capital mineira, tiveram a oportunidade de testemunhar a eficiência da super heroína que estava exposta em vitrine fazendo uma demonstração de suas qualidades. Acompanhada de outras “colegas de trabalho”, dentre elas a Mulher Mil e Uma Utilidades, a Costurinha, a Mulher Ajax; a Fêmea Vaca Maravilha arrancou suspiros da platéia enquanto limpava, esfregava, desinfetava o espaço corroído de mofo e tédio. Tudo isso numa ganância assombrosa pela limpeza e organização. O lado de lá da vitrine era o distanciamento. Olhos curiosos, atentos, admirando a destreza com a qual as tarefas eram executadas. Outra colega, notadamente a dona da voz daquelas mulheres in vidro, uma mulher cuja ação determinava os sentidos da imagem, trazia consigo uma caneta e com ela preenchia o vidro com palavras, frases... algumas vezes utilizando um léxico bastante comum aos homens. Ela estava do lado de fora, com a platéia, ocupando uma posição naturalmente não-representativa. Era uma artista plástica das palavras e o seu quadro estava vivo. Mulheres domadas, não ofereciam risco algum, sob o controle dos olhares. Mulheres utilidade, sujeitas a teste de qualidade. Mulheres coleta seletiva: deposite neste orifício seu lixo orgânico. Mulher alcalina, da esponja de aço, da garrafa PET, do creme lubrificante... Mulher lipo-aspirador, da varanda, do quintal, do comercial de pneu, das graxas de graça desgraça... Mulher tubo de ensaio: deposite neste corpo orgânico o lixo do seu orifício. Fim. Um carimbo e um selo de garantia: Aprovadas. Matéria-prima do produto: uma costela. Válido enquanto durar o estoque[6].

Após essa primeira mostra, mostrou-se necessário o aprofundamento em questões que apenas tínhamos tocado e que se referiam ao que estávamos denominando de não representacional[7] – mas que, em larga medida, ainda era uma noção confusa para a maioria de nós (teatral implica em representacional? Ou seja, é possível pensar uma ação/procedimento teatral que não seja representacional? Qual a relação entre espetacularização e a noção de representação? Quais os limites entre não representacional e performance?) – e, em conseqüência, aquelas que se referiam à noção de performatividade e teatro performativo[8]. Nesse sentido, foi de extrema importância o trabalho proposto para o agrupamento por uma de nossas pesquisadoras, Patrícia Sene, de dança criativa, o qual possibilitou-nos buscar uma maior verticalidade a partir de nossa prática corporal e engendrar caminhos que possibilitassem ao corpo entender.

O trabalho corporal da dança criativa com fundamentos de Bárbara Mettler é uma livre abordagem à arte do movimento corporal, valoriza a criatividade, a improvisação, a organicidade e a integração rítmica do corpo em movimento (...) Sempre a partir de problemas de movimento, improvisações são realizadas objetivando a consciência e o controle do movimento em relação aos elementos espaço, tempo e força. Não há a repetição planejada de formas de movimento, mas a repetição pode existir se for orgânica[9].

No âmbito de minha investigação, a pesquisa do movimento proposta pela Patrícia foi de extrema importância, pois serviu como uma resposta concreta e prática às questões teóricas que a leitura de Barrio/Barriga havia me colocado.

O trabalho para mim foi, hoje, revelador. Agora meu corpo começa a saber. (...) Quais os pontos de ligação entre o trabalho proposto e as ações do Barrio? Entre o corpo proposto dança pura criativa e o um modelo não representacional? E mais: o que me interessa investigar, para a dramaturgia que quero propor?
Interessa-me muito o corpo coisa suporte material. As relações dele com o espaço. Quem é o causador das ações? O artista ou os materiais por ele empregados? Barrio tem se mostrado frutífero
[10].

Barrio realmente se mostrava frutífero. Em maio, Clóvis, instigado pelas ações/situações do artista plástico propõe uma caminhada performática[11] que gerou muitas possibilidades futuras: havia elementos de instalação, a força da ação coletiva e direta, as possibilidades de diálogo e interrupção concreta na relação com o cidadão belorizontino. Especificamente em relação às minhas questões, a primeira caminhada, realizada no centro da cidade (ambiente sujo, “mal-freqüentado”) produziu um salto na minha investigação de uma dramaturgia in process, da qual o suporte material não é mais a folha de papel, mas o espaço da cidade e o corpo, e na qual o eixo temático não é mais a mulher marginal.

A margem é aqui. No centro da cidade. Nas ruas de cada dia mulheres são construídas, mulheres de cada dia. Mulheres de cama e mesa. Sobremesas. Valem tanto como um bombom sonho de valsa. Baixou. 20 centavos. Custam só vinte centavos. Vejo o casal que se abraça. Que pena, tivesse visto antes e deixaria meu buquê de vinte centavos para ela. Futura noiva domesticada pela tv se deus quiser.

Além da própria caminhada, gerou frutos para a minha investigação, alguns textos-relatos produzidos em decorrência dela, como o de William Neimar[12], no qual no qual ele faz uma comparação entre a ação realizada e a obra de Calvino, Cidades Invisíveis, especificamente a cidade dos mortos, Eusápia, simulacro perfeito da cidade dos vivos. Começavam a surgir os gérmens do experimento Cidade das Mortas.
Diante das várias questões colocadas pelo andamento do trabalho[13] ao Obscena, foram propostas mais duas caminhadas: no encontro seguinte, sairíamos da minha casa, para uma caminhada por regiões “nobres” da cidade, Sion e Savassi. Que tipo de relações e ganhos para os procedimentos e materiais pesquisados pelo grupo, tal caminhada suscitaria? Diferente da primeira caminhada, em que havia um guia e na qual estávamos juntos, nessa “deriva” sairíamos sozinhos, e teríamos uma hora para caminhar, recolher objetos, montar nossa instalação, interagir com ela e voltar para a minha casa. Nessa caminhada, não teríamos o olhar do outro ou para o trabalho do outro. Por um lado, estaríamos mais misturados na cidade, não nos destacaríamos como um coletivo. Mas, por outro lado, perderíamos justamente as possibilidades de colaboração/contaminação originadas na relação obscena que o olhar do outro lança sobre cada ação proposta.
Embora, para mim, essa segunda caminhada não tenha gerado elementos imediatos para a minha pesquisa, o mecanismo da caminhada e as questões que a primeira experiência desencadeou funcionaram como centros geradores da ação investigativa que teve início na mostra de junho. Isso foi perceptível de uma maneira geral, tendo a caminhada, inclusive, sido proposta como um procedimento da mostra, a ser experimentada junto ao público.
Para a mostra, a instrução guia privilegiava a continuidade da investigação sobre as ações não representacionais. Foi sugerida a seguinte divisão para os procedimentos, a fim de permitir o registro e acompanhamento da mostra, além da participação efetiva de alguns de nós, como atuantes, na proposta dos outros: no primeiro dia, seríamos Idelino, eu, Lissandra, Didi e William. No sábado, teríamos os procedimentos de Patrícia, Mariana, Moacir, Marcelo, Saulo e, novamente, eu. O domingo seria reservado para a caminhada performática, proposta de Clóvis.
Na sexta, Lissandra – com o corpo composto por objetos do universo feminino – fez uma caminhada, registrada por Túlio e Moacir, que saiu da Casa do Conde, passando pela Afonso Pena, e chegando até o Marília, em torno das oito horas. A percepção das relações que a ação da Lissandra propunha, só foi possível perceber quando assistimos ao registro. Interessante como a percepção dela no que diz respeito às reações das pessoas foi bem diferente do que percebemos ao assistir ao registro de sua passagem. Ela tivera a impressão que não havia estranhamento nas pessoas diante da figura dela. Ao vermos o registro, é notório o modo como a passagem dela provoca reações, ainda que as pessoas não a confrontassem com seu olhar.
Eu propus instalações feitas a partir de corpos de mulheres deitadas, desenhados no chão. Essas marcas de giz no chão remetiam, diretamente, àquelas decorrentes de assassinatos e que servem para mostrar a posição em que o corpo morto estava. Corpos escritos e completados por objetos – embalagens – de produtos femininos.

Proposta para uma situação/ação dramatúrgica.Narrativas jornalísticas poéticas científicas dicionarescas inventadas documentais.Embalagens plásticas metalizadas produtos de limpeza cosméticos mantimentos eletrodomésticos utensílios do lar higiene pessoal familiar.Giz. Fita crepe. Marcadores.Corpos de mulher. Instalações de objetos e narrativas.Escritas no momento? As notícias recortes de jornal?Anita. 18 a. rosto de menina, corpo de sereia, malícia de mulher. Adoro todas as idades! Liberal c/ carinho. Sem pressa. Ap. c/ DVD erótico.Enterrada menor de treze anos, estuprada e morta. Cem mil crianças e adolescentes são explorados sexualmente no Brasil.Júnior Lima está solteiro. Segundo o jornal Expresso, terminou o namoro de um ano do cantor com a estudante de direito Sheila Santos, de 24 anos. [14]

A partir da mostra de junho, firmou-se o propósito de investigarmos mais profundamente, Lissandra e eu (ela, por meio da colocação na rua de um corpo construído a partir de objetos do universo feminino e, eu, dos corpos mortos desenhados no chão e preenchidos com escritas produzidas no calor do momento); o experimento que eu havia começado a denominar de Cidade das Mortas. A investigação prática, no entanto, só começaria, efetivamente, em agosto. Transcrevo abaixo, na íntegra, o relato de 18 de agosto, na qual descrevo a primeira experiência realizada na rua.

Eu armada com meu instrumento: o giz, colocado singelamente numa embalagem de creme para cabelo: Hair construtor.
Eu também me aqueço, preparo meus instrumentos. Como avançar a ação? É necessário selecionar narrativas a serem experimentadas. Os anúncios das prostitutas de Curitiba devem percorrer esses corpos mortos, desenhos a giz no chão. Também deve estar lá o verbete do Aurélio. Também quero: a gente pensa que é mulher e é só fêmea, bichinho de estimação. Também quero: uma mulher é feita de arestas, becos, buracos. Voz, carne e sangue. E osso e pele. Quero brincar com as tarefas inúteis e com os desejos de consumo da mulher: depilação a laser, botox, jet bronze, diet, light. E quero jogar com as manchetes e estatísticas: Enterrada menor de treze anos, estuprada e morta. Cem mil crianças e adolescentes são explorados sexualmente no Brasil.
Eu e Lica nos guardávamos. Nosso trajeto: do Marília à Estação. Pela Afonso Pena, paradas no caminho. Corpos. Escritas. Em frente ao Café Nice a mulher objetos foi ovacionada como uma miss no desfile de finalista. Ah, os homens! Ali nos pareceu um ótimo lugar para deixar nossas mortas. A mulher objetos larga suas inúmeras sacolas e deita-se no chão. Desenho um belo corpo no chão e começo a preenchê-lo: mulher ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mulher da vida: meretriz. Mulher à toa: meretriz...
Estávamos em frente à McDonald´s. Eu escrevia. A Mulher objetos postava-se em frente ao M, compondo com o seu corpo naquele espaço. M. Mulher objeto.
Precisamos explorar mais a Praça Sete.
Mas, ontem, ali, nos perdemos. Desci a Amazonas, busquei-a na Praça Rui Barbosa. Praça da Estação. Onde estará?
De repente, a vejo. Do outro lado da rua, carregada de sacolas, numa alameda de luzes. Atravesso a rua. Ela senta-se em frente a um casal de mãos dadas no banco da praça. Desenho bunda e pernas. Mãos saem dos quadris. O desenho é interessante, mas o chão é árido. Já começo a criar preferências. Ah, adoraria poder deitá-la no asfalto. Desenhá-la em meio aos carros. Parar o trânsito.
Ela atravessa a grande avenida, avança para a Estação. Caminha entre os pontos de ônibus e deita-se na passagem dos pedestres. Afeiçoei-me às passagens de pedestre. O chão é liso e inclinado. O espaço é razoável e atrapalhamos o trânsito.
“Vocês são de algum movimento feminista? O que é isso? É teatro?”
A última morta deixamos sob o viaduto de Santa Tereza: Samy, 20 anos. Morena mestiça. Sapeca e safada.
É preciso ser mulher até o osso.
Deixamos o último traço e partimos. Eu bastante feliz. Achei o fio dessa meada.
Hoje até vou ao Maletta. É preciso beber as mortas
[15].

Em agosto, fizemos algumas experiências, variando Lissandra as personas que investigava em sua relação com os objetos. No dia 21, por exemplo, ela transitou de uma “noiva” a uma juíza, passando, depois, à mulher vaca maravilha. Novamente transcrevo o relato da experiência.

Hoje ela faz 40 anos. Mas nem parece. Hoje não há festa nem glamour. Vestida de branco, um carrinho de feira lotado de sacolas, balde, bacia, rodo e apetrechos variados, tamancos e uma capa (véu de noiva?) de supermulher vaca maravilha. Ela parte para a praça. Para a rua. Para o trabalho diário. Não, esse não é o seu trabalho. Ou por outra, é. Mas que trabalho é esse?
Partimos as duas para a rua. Ela armada com seus objetos. Eu, com minhas narrativas e meu olhar que registra sua passagem. Praça da Estação. A mulher noiva vaca maravilha empilha embalagens e mais embalagens plásticas. Distribui bandejas e bandejas de isopor pela praça. Aos poucos, lanço alguns registros dessa passagem sobre o cimento da praça. Um dia, quando pequena, sua mãe a levou a uma exposição de bonecas. Bonecas de porcelana, bonecas de louça. Bonecas de plástico. Bonecas de trapo.
Mais adiante, um rol. Parir. Amar. Cuidar. Limpar. Transar. (mesmo sem vontade).
Partimos para a caminhada. Para isso, ela troca o hábito. A gente é aquilo que consome. Mulher bacia, mulher vassoura. É bonito vê-la se preparar. Ela coloca seus apetrechos, recolhe seus objetos. Mulher touca na cabeça e boneca de plástico. Mulher de plástico, meias e conformações. Prepara o carrinho de feira, seu companheiro jurado em frente à fonte. Afinal, a mulher precisa ter onde se apoiar. A mulher está em obras, desculpem o transtorno. Estamos trabalhando para você.
A mulher objetos parte. Dessa vez, ela fala. E muito. Subimos a Praça da Estação em direção à Praça Sete. E ela fala. Só se cala ao deitar-se no chão, modelo vivo de uma mulher morta. E sua fala se materializa escrita. Ela me inspira desvios. Fluxos velozes de giz. As mulheres mortas ficam na Estação e partimos. Na Praça Sete, os quatro cantos. Monumentos animados dessa mulher objeto. Outras mulheres objetos. Corpos mortos na paisagem da cidade. Mulheres bichinhos de estimação. Mulheres bonecas em exposição. Mulheres noivas. Mulheres rol. Registros de nossa passagem, marcas do nosso diálogo.
Agora já é tarde e estamos cansadas da lida. Eu vou embora pensando que esse agosto que nos pariu é prenhe
[16].

Ainda em agosto, após conversa com a pesquisadora Erica Vilhena, na qual ela relatou uma visita que havia feito com a mãe a uma exposição de bonecas, comecei a vislumbrar uma ação maior, tecida do diálogo das minhas escritas corpos de giz com a ação de algumas atrizes do agrupamento. Esta ação já havia sido experimentada, de certo modo e ainda que superficialmente, já na primeira mostra, em abril. Agora, no entanto, ela começava a se desenhar, ainda na minha cabeça, mais fortemente a partir da idéia de bonecas.
Também em agosto foi realizada a terceira mostra do Obscena, a qual já refletia a relação que começou a se estabelecer de maneira bastante marcante, para muitos dos pesquisadores, com propostas mais nítidas de ocupação de espaços públicos e urbanos. Denominada de Cartografias obscênicas, a mostra propôs a investigação de simultaneidades/ações na rua. Como reflexo da mostra – a partir da avaliação feita, na qual notamos que as mostras estavam, de certo modo, adquirindo o caráter de apresentação, optamos, a partir de setembro, por um novo formato: o de mostras semanais. No formato anterior, os procedimentos/experimentos semanais eram realizados no âmbito interno, restrito aos pesquisadores do Obscena, com eventuais excursões de um ou outro em suas aventuras cênicas. Neste formato, só abríamos o trabalho para “visitação” pública nas mostras trimestrais: tal ação acabava por ter um aspecto de apresentação.
Já as mostras semanais se mostraram um formato bem mais interessante, o qual atendia à processualidade da pesquisa. Com a abertura dos trabalhos de investigação ocorridos durante a semana, ou seja, no dia-a-dia da experimentação, da investigação em ação de cada um de nós, conseguimos, parece-me, atingir o caráter processual inerente à pesquisa que estamos nos propondo a realizar. Falo dos trabalhos públicos que ocorreram nos dias 08, 15, 22 e 29 de setembro.
Nos dias 15 e 29, realizamos, eu e Lissandra, mais algumas investigações em torno do experimento cidade das mortas. No dia 15, nos encontramos mais cedo na casa dela, de onde saímos por volta das cinco e meia da tarde. Como já havíamos experimentado dias à tardinha, início da noite e gostado das possibilidades, optamos por começar o trabalho mais cedo do que o marcado para o encontro dos obscênicos. Nesse dia, novamente trabalhamos na praça da estação e na praça sete. Na praça da estação comecei a filmar a Lissandra, ação logo complementada por Fernando. Também não demorou muito e apareceu a guarda municipal. “Evento tem que ter autorização”. Como tem que ter autorização a palavra escrita dano ao patrimônio público pichação em giz. A palavra escrita, o registro, são marcas inegáveis de uma subversão da ordem. São marcas do perigo.
Na praça sete, nesse olho do furacão, o chão é liso e possível e a escrita sujeita ao giz. Nessa praça, reformada para descentralizar o centro, o fluxo de passantes nos engole e esconde. O centro da cidade é um circo e nele faremos o círculo, percorrendo todos os monumentos dessa praça para terminar na MacDonald´s, com seu monumental M. mulher.
Quem é essa mulher? Não é possível explicar, é necessário construir.
Coincidindo com a investigação dessa escrita no espaço da ação, vários foram os encontros felizes ocorridos nesse mês das flores e tempestades de granizos: as discussões no projeto laboratório acerca do conceito de intervenção urbana, a presença marcante de Antônio Araújo, a tese de José da Costa sobre as escrituras cênico-dramatúrgicas conjugadas; que acabaram por me colocar diversas questões em relação a essa pesquisa: da relação com o espectador/transeunte, das possíveis formas de inscrição textual, do lugar do “dramaturgo”, do texto como elemento material e da dramaturgia como escritura/leitura. E ainda: a mim caberá o todo? Tais questões apareceram mais fortes após a experiência do dia 29. Transcrevo abaixo o relato do dia de trabalho, na íntegra.

Savassi. Dia 29 de setembro. Dessa vez, saímos do Sion. Lica propôs experimentar sonoridades e corporalidades animais. A proposta hoje era percorrer as lojas, vitrines. Interagir com o ambiente consumo. Sempre que possível – o chão ali não ajuda muito – deixaríamos algumas mulheres mortas pelo chão. Ali, recuperei novamente a escrita no papel de propaganda. Escrita cartaz.
Esse corpo mulher sacolas perambula pelas lojas do Pátio Savassi. Gravar não pode. Só o celular democrático de uso geral. Todo mundo tem câmera Bluetooth mp3. As caras nas câmeras redes de TV. A câmera caracteriza normaliza o acontecido. Este se torna evento. Teatro arte propaganda marketing novela das oito. Filme. No mundo do mercado o mercado explica tudo? É necessário criar o atrito. O estranhamento. Essa mulher produzirá sonoridades corporalidades animais.
Por que você está vestida assim? E você? Por que a prancha escova progressiva inteligente jeans da moda o roxo bata pode. Por que o sexo forçado marido namorado um tapinha não dói. Homem faz sexo mulher faz amor lipoaspiração drenagem linfática. Tintura. Depilação epilação hidratação cauterização ballayage plástica botox silicone. Não é possível explicar, desculpe o transtorno. Estamos trabalhando para você.
Descemos a rua em atrito com as lojas que encontramos pelo caminho. Drogaria Araújo. A mulher super vaca maravilha rebola reboa seu sino nos corredores vidros prateleiras produtos. A ação é sutil. O som na drogaria. A pose em frente às lojas da Rede. Em frente à Travessa, o diálogo com a estátua da mulher escritora. A prateleira de bonecas da loja de brinquedos. Aqui, as escritas se multiplicam, geradas pelo atrito contato com esses mundos. Materiais. A prateleira rosa. O banquinho branco em frente aos contos de fadas da melissa. A estátua escritora e a boneca de papel da propaganda de desodorante.
Mulher. Uma obra em construção.
Quem é a obra de quem?
Filé. Delícia. Gostosa. Carne de primeira. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca jaca galinha piranha. Mulher melancia. Mulher da vida. Mulher da zona. Mulher da comédia. Mulher à toa. Mulher. A esposa em relação ao marido. Moça que atingiu a puberdade. Samy. 18 aninhos. Morena gostosa. Safada, sapeca como você gosta. 100% completa. Sexo anal total. 69 gostoso. Foto original sem retoque. Gosto de beijar. Amar. Cuidar. Transar. Mesmo sem vontade. Esquecer. Perdoar. Compreender. Sujeitar. Sacrificar. Esquecer. Esquecer. Embalar. Adestrar. Ensinar. Mesmo sem vontade. Educar. Amamentar. Brincar. Parir. Amar. Limpar. Passar. Jogar no rio. Na privada. Na esquina. Na esquina.
Desculpe o transtorno estamos trabalhando para você. Uma obra em construção. Barbies. Pollys. Princess all globe. Bonecas domesticadas pela TV. Hidratantes. Desodorantes. Perfex. Batom. Antiaderente. Drenagem linfática Jet bronze endermologia com arte é diet light in out enterrada menina de 14 anos encontrada morta e estuprada. Metida. Fodida. Arregaçada. Como você gosta.
Cerveja. Boa. Gostosa. Gelada.
Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne
[17].

Após o dia 29 de setembro, a imagem de uma exposição de bonecas se fortaleceu na minha cabeça. Propus, então, às pesquisadoras Erica Vilhena e Joyce Malta uma ação integrada ao trabalho que eu e Lissandra já vínhamos desenvolvendo. Abaixo transcrevo o email que enviei, no qual estava contida minha proposta “brincando de bonecas”.

“...eu vou interagir com as instalações das três. não sei se vocês ficarão juntas ou separadas, mas penso que próximas é necessário, para configurar um único acontecimento: a exposição. como se fossem nichos, prateleiras ou vitrines. podemos andar com a exposição pelos quatro cantos da praça e cercanias.
vou trabalhar com escrita em papel de propagandas e com o giz no chão. vou querer que, às vezes, vocês se deitem e eu possa desenhar seus corpos no chão e escrever. o trabalho demandará um tempo. podemos alternar suas ações e minhas escritas no chão. enquanto desenho uma, para escrever a partir dela, as outras continuam em ação. podemos também alternar a isso, uma ação conjunta. os três corpos deitados no chão.
PROPONHO ESSA AÇÃO COMO UMA ESTRUTURA DE DIÁLOGO COM OS MATERIAIS DAS ATUANTES. NÃO QUERO CORPOS AO MEU SERVIÇO. PROPONHO O ESTABELECIMENTO DE UM DIÁLOGO EM TRABALHO. DE UMA ESCUTA DOS CORPOS E DAS POSSIBILIDADES DE AÇÃO DO OUTRO E COM O OUTRO. A PREPARAÇÃO SE FAZ NECESSÁRIA.
enfim, essas são as questões que estou pensando...
e pra vocês?”
[18]

Um email. Minha tentativa de organizar uma proposta ainda muito incipiente. Algo me interessa muito na idéia de uma exposição de bonecas. Bonecas domesticadas pela tv. Expor a boneca das outras mulheres/transeuntes por meio dessas que proponho.
Da experiência concreta, realizada na Savassi, no dia 13 de outubro (não foi por acaso a proximidade com o Dia das Crianças), muitas coisas interessantes e potentes surgiram. Os corpos das mulheres mortas (o conjunto aumenta a potência disso). Aliás, o conjunto é bem favorável. Noções de invasão. As bonecas da Joyce, elas em série. Ela, mais uma. Reprodução de estereótipos, de corpos manequins de vitrine. Joyce escultura. O corpo martirizado de Erica, apertado pelas roupas pequenas demais e pelo salto alto. Sua felicidade idiota. As possibilidades de exploração de uma espetacularização exacerbada: o fio da navalha. Como quebrar o conforto/comodidade que ela proporciona, ordenando e explicando, tornando aceitáveis aqueles corpos/ações/invasão?
Muitas questões surgiram: como garantir essa ruptura do conforto que as câmeras proporcionam. Seria uma solução exacerbar mais ainda: invasão de paparazzi? A necessidade de estudo desse espaço a ser ocupado. E de outros espaços possíveis. O que queremos do espaço, o que dele é necessário? Um estudo dos corpos: a hipérbole dos corpos? O corpo cotidiano? Os estados alterados: felicidade/martírio. Desfazimento dos corpos. O estudo das ações e relações: entre nós e de cada uma. Experimentar as variações de tempo e ritmo. As pausas. A relação com a escrita. Pensar um roteiro de ações? Também ficou a necessidade de maior organização e planejamento. Definir mais claramente os objetivos individuais e as possibilidades de rede.
Vejo uma imensa potência nessa exposição de bonecas, nessa estrutura aberta que articula nossas ações em uma rede colaborativa, num diálogo que ocorre no aqui e agora, no calor de nossa sala de ensaio, a rua. Interessa-me, sobretudo, isso. Essa obra se fazendo ali, do cruzamento de nossas vozes autônomas, de nossos fluxos paralelos. Em permanente diálogo.
Por meu lado, eu devo assumir esse corpo dramaturga atuante em fluxo também de escrita. Em permanente ação obscena filtrando espectadora a paisagem da rua. Estou dentro/fora? Que lugar é esse?
Como vejo extrema potência nesse experimento que já estabelecemos, Lissandra e eu, entre escrita e ação, entre mortas que se multiplicam pelas ruas e essa mulher objetos em suas diversas ações: numa ação concentrada, em determinado espaço. Ela nômade invasora de lojas espaços privados de consumo imediato.
Como viabilizar o aprofundamento desses experimentos?


Referências Bibliográficas
BARRIGA, Merle Ivone. As Ações de Artur Barrio : um modelo não representacional para o ator contemporâneo. Dissertação de mestrado. Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, 2006.
LEHMANN, Hans-Thyes. O Teatro Pós-Dramático. Tradução de Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2007.
REWALD, Rubens. Caos/dramaturgia. São Paulo: Perspectiva, 2005.
SENE, Patrícia. Agrupamento de Ações: Aceita um café? Artigo inédito. Belo Horizonte, 2008.

Sites visitados:
www.obscenica.blogspot.com




[1] LEHMANN, Hans-Thyes. O Teatro Pós-Dramático. Tradução de Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2007.
[2] Interessava-nos, inicialmente, investigar os elementos marginais da mulher, ou aquela mulher que não cabia nos limites impostos pelo padrão do feminino vigente na sociedade brasileira: a louca, a puta, a velha e, ampliando a margem, os seres que transitam entre o masculino e o feminino: o travesti, o transexual etc. Posteriormente, com o andamento da pesquisa, nos foi apontada a necessidade de investigar também (para alguns de nós, como no meu caso, passou a ser o cerne da pesquisa) a construção do modelo hegemônico da mulher: a mulher padrão, o feminino rosa, aquele que a sociedade não só aceita, como fabrica.
[3] Relato pessoal do encontro de 03 de março de 2008, no qual tivemos contato com o movimento internacional, anti-capitalista e feminista, Marcha Mundial das Mulheres, por meio de sua militante Hosana Passos. As frases presentes no relato foram escritas por mulheres durante oficina ministrada por ela.
[4] Relato pessoal de 24 de março de 2008.
[5] “O autor-espectador é o escritor forçado a sair de seu gabinete, de sua clausura, de sua solidão imaculada. Para criar ele necessita olhar o outro, entender a criação do outro, dialogar com o outro, aceitar as regras do outro e fazer com que o outro aceite as suas. O autor-espectador tem de olhar para si e para o mundo ao mesmo tempo, e sua criação é a própria medida deste se colocar no mundo. Ele não pode se anular, aceitando totalmente as questões do outro em detrimento das suas, como também não pode impor a qualquer custo as suas idéias, sem ouvir o outro. Em ambos os casos o processo se empobrece, pois perde a dimensão do diálogo, da interação, necessários para sua evolução” (REWALD, 2005: 63).
[6] Postado por Moacir Prudêncio em 21 de abril de 2008, no blog do Obscena. Ver em www.obscenica.blogspot.com.
[7] A partir do estudo da dissertação de mestrado de Merle Ivone Barriga, As Ações de Artur Barrio : um modelo não representacional para o ator contemporâneo.
[8] Uma das atividades do Obscena, em março, tinha sido o acompanhamento das palestras do Ecum – Encontro Mundial de Artes Cênicas – no qual tínhamos tomado um contato mais direto com este conceito, discutido pela pesquisadora canadense Josette Féral.
[9] SENE, Patrícia. Agrupamento de ações: aceita um café? (artigo inédito). Belo Horizonte: 2008.
[10] Relato pessoal de 19 de maio de 2008.
[11] A caminhada consistia em percorrer um trajeto indeterminado, pela cidade, recolhendo materiais na rua que nos chamasse a atenção para, posteriormente, e sob o comando de Clóvis – que determinava o lugar para cada um de nós – montar uma instalação com os objetos recolhidos. Em seguida à montagem da instalação, deveríamos colocar nosso corpo em ação, junto com ela.
[12] Ver relato de 26 de maio de 2008, em: www.obscenica.blogspot.com.
[13] Intensificadas pela relação com o Teatro Marília, uma vez que lá dentro não estávamos encontrando espaço para desenvolver a pesquisa prática, em razão da dificuldade de termos acesso aos locais anteriormente acordados com a administração: palco, porão, vitrine e mezanino. Em geral, estávamos com o uso restrito à sala de reunião, adequada, somente, para os encontros teóricos.
[14] Relato pessoal de 09 de junho de 2008, no qual descrevo a proposta para a mostra de junho.
[15] Relato pessoal de 18 de agosto de 2008.
[16] Relato pessoal de 21 de agosto de 2008.
[17] Relato pessoal do dia 29 de setembro de 2008.
[18] Email pessoal do dia 06 de outubro de 2008.