terça-feira, 30 de setembro de 2008

setembro das flores

O mês de setembro transcorreu em meio a mostras semanais: formato bem mais interessante, que atende à processualidade da pesquisa. Explico: antes vínhamos fechando os procedimentos/experimentos semanais no âmbito interno, restrito aos pesquisadores do obscena, com eventuais excursões de um e outro em suas aventuras cênicas. Só abríamos o trabalho para “visitação” pública nas mostras trimestrais: tal ação acabava por ter um aspecto de apresentação.
Com a abertura dos trabalhos de investigação ocorridos durante a semana, ou seja, no dia-a-dia da experimentação, da investigação em ação de cada um de nós, conseguimos, parece-me, atingir o caráter processual inerente à pesquisa que estamos nos propondo a realizar. Falo dos trabalhos públicos que ocorreram nos dias 08, 15, 22 e 29.
Nos dias 15 e 29, realizamos, eu e Lica, mais algumas investigações em torno do experimento que intitulamos cidade das mortas. No dia 15, já registrado em relato anterior, eu e lica nos encontramos mais cedo na casa dela, de onde saímos por volta das cinco e meia da tarde. Como já havíamos experimentado dias à tardinha, início da noite e gostado das possibilidades, optamos por começar o trabalho mais cedo do que o marcado para o encontro dos obscênicos. Nesse dia, novamente trabalhamos na praça da estação e na praça sete. Na praça da estação comecei a filmar a lica, ação logo complementada por Fernando. Também não demorou muito e apareceu a guarda municipal. Evento, tem que ter autorização. Como tem que ter autorização a palavra escrita dano ao patrimônio público pichação em giz. A palavra escrita, o registro, são marcas inegáveis de uma subversão da ordem. São marcas do perigo.
Na praça sete a escrita sujeita ao giz. Aqui, o chão é liso e possível. Praça reformada para descentralizar o centro, esse olho do furacão. Aqui, o fluxo de passantes nos engole e esconde. O centro da cidade é um circo e nele faremos o círculo, percorrendo todos os monumentos dessa praça para terminar no monumento MacDonald´s, com seu imenso M. mulher.
Quem é essa mulher? Não é possível explicar, é necessário construir.
No âmbito desse trabalho, a minha questão principal se relaciona com a prática de dramaturgia que tenho proposto. Dramaturgia do instante. Coincidindo com a investigação dessa escrita no espaço da ação, vários foram os encontros felizes ocorridos nesse mês das flores e tempestades de granizos: as discussões no projeto laboratório acerca do conceito de intervenção urbana, a presença marcante de Antônio Araújo, a tese de José da Costa sobre as escrituras cênico-dramatúrgicas conjugadas; que acabaram por me colocar diversas questões em relação a essa pesquisa: da relação com o espectador/transeunte, das possíveis formas de inscrição textual, do lugar do “dramaturgo”, do texto como elemento material e da dramaturgia como escritura/leitura. E ainda: a mim caberá o todo? Tais questões apareceram mais fortes após a experiência do dia 29.
Savassi. Dia 29 de setembro. Dessa vez, saímos do Sion. Lica propôs experimentar sonoridades e corporalidades animais. A proposta hoje era percorrer as lojas, vitrines. Interagir com o ambiente consumo. Sempre que possível – o chão ali não ajuda muito – deixaríamos algumas mulheres mortas pelo chão. Ali, recuperei novamente a escrita no papel de propaganda. Escrita cartaz.
Mas não nos apressemos. Percorramos o percurso. Avenida Nossa Senhora do Carmo. Os carros em alta velocidade e os pedestres perplexos. Aqui o chão é liso. Bêbados nos tiram a concentração. Esse corpo mulher sacolas atravessa a avenida. Olha ela na passarela.
Esse corpo mulher sacolas perambula pelas lojas do Pátio Savassi. Gravar não pode. Só o celular democrático de uso geral. Todo mundo tem câmera Bluetooth mp3. as caras nas câmeras redes de TV. A câmera caracteriza normaliza o acontecido. Este se torna evento. Teatro arte propaganda marketing novela das oito. Filme. No mundo do mercado o mercado explica tudo? É necessário criar o atrito. O estranhamento. Essa mulher produzirá sonoridades corporalidades animais.
Por que você está vestida assim? E você? Por que a prancha escova progressiva inteligente jeans da moda o roxo bata pode. Por que o sexo forçado marido namorado um tapinha não dói. Homem faz sexo mulher faz amor lipoaspiração drenagem linfática. Tintura. Depilação epilação hidratação cauterização ballayage plástica botox silicone. Não é possível explicar, desculpe o transtorno. Estamos trabalhando para você.
Descemos a rua em atrito com as lojas que encontramos pelo caminho. Drogaria Araújo. A mulher super vaca maravilha rebola reboa seu sino nos corredores vidros prateleiras produtos. A ação é sutil. O som na drogaria. A pose em frente às lojas da Rede. Em frente à Travessa, o diálogo com a estátua da mulher escritora. A prateleira de bonecas da loja de brinquedos. Aqui, as escritas se multiplicam, geradas pelo atrito contato com esses mundos. Materiais. A prateleira rosa. O banquinho branco em frente aos contos de fadas da melissa. A estátua escritora e a boneca de papel da propaganda de desodorante.
Mulher. Uma obra em construção.
Quem é a obra de quem?
Filé. Delícia. Gostosa. Carne de primeira. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca jaca galinha piranha. Mulher melancia. Mulher da vida. Mulher da zona. Mulher da comédia. Mulher à toa. Mulher. A esposa em relação ao marido. Moça que atingiu a puberdade. Samy. 18 aninhos. Morena gostosa. Safada, sapeca como você gosta. 100% completa. Sexo anal total. 69 gostoso. Foto original sem retoque. Gosto de beijar. Amar. Cuidar. Transar. Mesmo sem vontade. Esquecer. Perdoar. Compreender. Sujeitar. Sacrificar. Esquecer. Esquecer. Embalar. Adestrar. Ensinar. Mesmo sem vontade. Educar. Amamentar. Brincar. Parir. Amar. Limpar. Passar. Jogar no rio. Na privada. Na esquina. Na esquina.
Desculpe o transtorno estamos trabalhando para você. Uma obra em construção. Barbies. Pollys. Princess all globe. Bonecas domesticadas pela TV. Hidratantes. Desodorantes. Perfex. Batom. Antiaderente. Drenagem linfática Jet bronze endermologia com arte é diet light in out enterrada menina de 14 anos encontrada morta e estuprada. Metida. Fodida. Arregaçada. Como você gosta.
Cerveja. Boa. Gostosa. Gelada.
Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne.

Nina Caetano

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

cidade das mortas: experimento cênico inacabado número zero.

Ação/situação para uma dramaturga e uma atriz.
Quem é a obra de quem? Mulher: uma obra em construção. Desculpe-nos o transtorno. Estamos trabalhando para você. Não é possível explicar, é necessário construir.

Alguma hora da noite e estamos na Praça Sete.
Uma mulher caminha carregada de sacolas. Seu corpo objetos. Embalagens plásticas metalizadas produtos de limpeza cosméticos mantimentos eletrodomésticos utensílios do lar higiene pessoal familiar.
Uma outra mulher a segue, nas mãos uma embalagem de creme de cabelo da qual saca seu instrumento. Um giz. A dramaturga vai desenhar e escrever continuamente. Narrativas jornalísticas poéticas científicas dicionarescas inventadas documentais. Escritas do momento.
A mulher objetos caminha. Instala seu corpo no espaço. Nos monumentos. Nas ruas. Destaca a arquitetura. Deita-se no chão.
A dramaturga desenha. A Cidade das Mortas. Seus corpos objetos no calçamento da cidade. Os anúncios das prostitutas de Curitiba devem percorrer esses corpos mortos, desenhos a giz no chão. Também devem estar lá o verbete do Aurélio e o inventário de tarefas inúteis. As manchetes e estatísticas. E os desejos de consumo das mulheres domesticadas pela tv. A dramaturga já começa a criar preferências. Ah, adoraria poder deitá-la no asfalto. Desenhá-la em meio aos carros. Parar o trânsito.

Mulher. O ser humano do sexo feminino capaz de conceber e parir outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mulher da vida. Meretriz. Mulher à toa. Meretriz. Mulher da comédia. Meretriz. Mulher da rua. Meretriz. Mulher da zona. Meretriz. Mulher.
Parir. Limpar. Amamentar. Trocar. Compreender. Amar. Sujeitar. Sacrificar. Lavar. Passar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Perdoar. Aquecer. Embalar. Beijar. Lamber. Chupar. Dar de mamar. Transar. Mesmo sem vontade. Mulheres domesticadas pela tv. Mulheres eletrodomésticas.
A mulher em relação ao marido. Esposa. Rolinhos pregadores talhares bicos de mamadeira chupeta fralda peneira vassoura escova botão linha tampa bombril perfex avental sutiã calcinha meias batons potes hidratantes depiladores filhos planos de saúde férias marido. Feia. Gorda. Velha. Usada. Jogada fora.
A gente pensa que é mulher e é só fêmea. Bichinho de estimação. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca. Galinha. Piranha. Filé. Gostosa. Gostosa. Samy. 20 anos. Morena mestiça. Safada e sapeca. 100% completa. Sexo anal total. Gosto do que faço.
Corpo receita sexo beleza corte cabelo cor unha esmalte batom inverno verão diet light in out Enterrada a jovem de 14 anos encontrada estuprada e morta.
Moda revista filhos baby sitter babá empregada carro seguro colégio celulite flacidez plástica estética beleza jet bronze limpeza de pele completa eletrólise depilação de última geração massagem redutora massagem relaxante drenagem linfática vácuo com endermologia e arte.
Uma mulher é feita de arestas, becos, buracos. De sangue, veias, garganta. Uma mulher é feita de voz, pernas, pensamento e útero.

A mulher objetos atravessa as avenidas, avança para a Praça da Estação. Caminha entre os pontos de ônibus e deita-se na passagem dos pedestres.
A dramaturga tem especial afeição pelas passagens de pedestre. O chão é liso e inclinado. O espaço é razoável e atrapalhamos o trânsito.
Nina Caetano. BHZ. 15 de setembro de 2008.