quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

uma escrita performada

"somos incontornáveis e irreversíveis" (hosana. marcha mundial das mulheres)
À luz dos conceitos de performance e performatividade, abordados ao longo da disciplina Teoria e Prática do Teatro: além dos limites, pretendo discutir os processos de construção do que denomino como escrita performada – a escrita no espaço e no calor da ação – durante as intervenções urbanas de Baby Dolls, uma exposição de bonecas, realizadas pelo Obscena, de outubro de 2008 a novembro deste ano, em Belo Horizonte, São José do Rio Preto e Recife.
O Obscena, agrupamento independente de pesquisa cênica coordenado por mim e pela atriz Lissandra Guimarães, vem, desde março de 2007, pesquisando experimentos cênicos que têm como referência o universo marginal da mulher e que propõem a revisitação e reterritorização das relações entre o público e o privado e entre o teatro e o espectador, por meio da investigação do corpo/instalação e de uma ação não representacional. A criação se dá em uma rede colaborativa, em que as experimentações se retroalimentam através não só de um diálogo constante entre os pesquisadores envolvidos , mas também por meio da participação do espectador/colaborador. São eixos norteadores do Obscena o work in process, a investigação do conceito de instalação/ocupação de espaços públicos e urbanos, a gramática gestual e verbal da atuação rapsódica e a obra do artista plástico Artur Barrio.
Em 2008, os elementos temáticos e poéticos investigados pelo Obscena durante o desenvolvimento do projeto de pesquisa Às margens do feminino: texturas teatrais da beira (contemplado pelo Fundo de Projetos Culturais da LMIC de Belo Horizonte) geraram, além de mostras processuais e fóruns de discussão, realizados ao longo do ano, experimentos cênicos e performáticos, entre eles a intervenção urbana Baby dolls, uma exposição de bonecas, fruto do diálogo entre minha investigação dramatúrgica e as pesquisas atorais de Lissandra Guimarães, Erica Vilhena e Joyce Malta.
Especificamente no que concerne às minhas questões, investigo, dentro do agrupamento, uma escritura processual da qual o suporte material não é mais a folha de papel, mas o espaço da cidade e o corpo. Ao utilizar o termo “escrita performada”, busco uma diferenciação em relação tanto à noção de escrita performática presente nos estudos da performance quanto àquela presente nos estudos literários.
Para os estudiosos da performance, o termo refere-se, em geral, aos ensaios/críticas/registros, em geral autobiográficos, de performances realizadas, os quais funcionam como uma espécie de arquivo, ainda que busquem trazer à tona novamente “a força afetiva do evento performático” ao ultrapassar, em certa medida, o registro lingüístico. Para Ravetti (2003: 41), o “transgênero performático privilegia a voz, quer mostrar o movimento, registrar a ação e produzir efeitos de sensações”. Ao contrário do evento performático, no entanto, a escrita performática pressupõe a existência do suporte de papel e o domínio do código alfabético para sua construção. Nesse sentido, muitas vezes, a escrita performática pode vir a servir “como uma estratégia de repúdio e de clausura das práticas corporificadas que proclama descrever” (TAYLOR, 2002: 20).
Para os estudiosos da literatura, a escrita performática está diretamente alinhada à noção de escritura (Barthes) e ao pensamento do texto como produtividade e construção dialógica (Bakhtin, Kristeva). Para Barthes, a noção de escritura vai justamente (como o transgênero performático) ultrapassar (ela também) os limites ao que a literatura (ou o texto literário, pensado dentro de certa tradição) está submetida, pois, para ele, é “bem possível que a literatura (...) realize sua própria destruição para renascer na forma de uma escritura que já não estará exclusivamente ligada ao impresso, mas será constituída por todo trabalho e toda prática de inscrição” (BARTHES, 2004:99).
Nesse sentido, pode-se dizer que, no caso dos estudos literários, existe uma percepção clara das possibilidades de construção de um “texto” diferente daquele produzido pelo escritor, de um texto mental que se projetaria da mente do leitor, ou, em outras palavras, da existência de uma “performance leitora ou narrativas desmaterializadas – duas expressões para nomear o resultado do embate performático entre texto e leitor – suscitadas pela existência de textos literários abertos e dialógicos” (LEAL, 2008: 06). A escrita performática seria, então, uma espécie de encenação “do si mesmo da palavra para um outro”, na qual a palavra, ou seja, o verbo, “se vê movido por um desejo de se deslocar, provisoriamente, da página impressa e de se inscrever (...a partir de uma escrita outra, realizada pelo leitor) na efemeridade performática da tela da consciência, da imaginação do receptor (LEAL, 2008:01).
Nesse caso, não só a literatura é performática – e só o é quando provoca o leitor à produção de outros textos para além dela, isto é, quando é um “texto de fruição”, nos dizeres de Barthes (2004) – como também é performático aquilo que ocorre entre o texto e o leitor.
Para o teatro contemporâneo, a percepção de que o teatro não se caracteriza pelo universo ficcional que veicula – ou seja, pela possibilidade de se “contar uma história”, de “representar o mundo” – mas que ele é, antes de tudo, uma arte da presença, da relação direta entre o ator e o espectador, foi crucial para deslocar a escrita teatral de sua função mimética.

Hoje em dia é aceito que a escrita teatral, assim como o teatro em forma encenada, não busca mais mimar a realidade, quer dizer, o texto já não almeja possibilitar a construção de uma camada realista em cena, que narre o mundo de forma representativa. É nesse sen¬tido que podemos falar de uma escrita que vai da representação para presentação, ou, como fala Chevallier, o intuito não é mais o possibi¬litar uma percepção realista do evento teatral, onde a percepção intelectual é mais diretamen¬te acionada, mas sim instigar o olhar sobre a presentação, quando então a percepção senso¬rial se torna mais importante .

Essa escrita teatral contemporânea, alguns estudiosos – a partir do conceito de performatividade – denominam como dramaturgia performativa. Para Féral, a performatividade não é uma “propriedade” dos objetos, da ação ou do texto, mas uma dinâmica de relação que investe esses objetos, essa ação ou esse texto performativo.

Tratar um objeto, obra ou produto “como” performance – uma pintura, uma novela, um sapato, ou qualquer outra coisa – significa investigar o que o objeto faz, como ele interage com outros objetos ou seres e como ele se relaciona com outros objetos e seres. Performance existe somente como ação, interações e relações .

Se a performatividade não é uma qualidade inerente ao objeto performativo, o que, então, a caracterizaria? Em primeiro lugar , seu caráter de acontecimento. Decorrente desse traço, se pode dizer que a performatividade evoca a presença concreta do performer, o que parece implicar em uma noção de risco, tanto para o performer quanto para o espectador. Nesse sentido, podemos dizer que ela se traduz, fundamentalmente, como uma experiência, pois o espectador “longe de buscar um sentido para a imagem, deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa” (FÉRAL, 2008: 203). Se, no reino da teatralidade , a obra é pensada como resultado, no reino da performatividade, ela é processo.

Três tapetes. Três nichos de exposição. Três bonecas, monumentos animados das mulheres objetos, convidam os transeuntes a brincar. Mulheres princesas, mulheres noivas, mulheres dóceis. Mulheres mudas. Mas não se engane. Logo, essas bonecas serão mulheres mortas, marcadas a giz no chão.

Também processual, Baby Dolls, uma exposição de bonecas discute a “fabricação” do modelo feminino presente na sociedade contemporânea e vem sendo realizada nas ruas e praças de Belo Horizonte desde outubro de 2008, além de já ter sido realizada no FIT São José do Rio Preto, na MIP 2 - Manifestação Internacional da Performance (BH/MG) e no XII Festival Recife do Teatro Nacional . Quando iniciamos o experimento, a proposta era investigar não só das relações entre o meio social e a mulher, mas principalmente as possibilidades cênicas geradas por essas relações vistas a partir de procedimentos de instalação e de ocupação e da investigação de elementos performáticos e dramatúrgicos, os quais visavam à recuperação da instância narrativa do repertório de matérias textuais utilizadas na criação (notícias de jornal, verbetes de dicionário, bulas de remédio, classificados de prostitutas, listas e rol, placas de trânsito, de obra civil e outras marcas de inscrição do ambiente urbano) e também à utilização do espaço público como uma "prática de invasão da cidade. Essa invasão é uma interferência na lógica da cidade, uma intromissão ao uso cotidiano dos espaços" (CARREIRA, 2008: 69).
Durante as intervenções que realizamos em 2008, muitas questões relativas à investigação de uma escritura no espaço da ação acabaram por se impor: quais as possíveis formas de inscrição textual e qual o lugar do “dramaturgo” dentro do acontecimento performático? Como operar a dramaturgia, no calor da ação performativa, entre um fluxo de leitura (espectador) e um de escrita (autor)? O texto, como elemento material, circunscreve/delimita a arquitetura dos fluxos de ações performativas? Em sua tese de doutoramento, Teatro Brasileiro Contemporâneo: um estudo da escritura cênico-dramatúrgica atual, Da Costa inaugura um conceito que lança algumas luzes sobre esses questionamentos:

A noção de criação cênico-dramatúrgica conjugada se refere ao campo do teatro contemporâneo em que a dramaturgia é construída como script (ou roteiro); muitas vezes como teatralização de textos de outros gêneros literários e discursivos (narrativas de ficção, cartas, diários, relatos de viagem etc.) e se produz em conexão direta com as necessidades, demandas e características específicas de projetos cênicos particulares

Ele considera ainda que “o diapasão conceitual da expressão escritura cênico-dramatúrgica conjugada (...) é dado fundamentalmente pelas idéias de processualidade, de interatividade e de simultaneidade de criações entendidas tradicionalmente como seqüenciadas” (DA COSTA, 2003: 16). Nesse sentido, entendo que os roteiros/relatos das intervenções realizadas (como registros/resultantes textuais das experiências de escritura da ação vivenciadas ao longo da pesquisa) poderiam se constituir, tanto como a ação propriamente dita, como escrituras cênico-dramatúrgicas conjugadas, uma vez que tanto a processualidade como a simultaneidade das criações dramatúrgica e cênica tenderam a atenuar, no processo de experimentação e criação, as hierarquias e fronteiras entre o campo literário (“a reflexão dramatúrgica, a criação verbal”) e o trabalho performativo .
No entanto, para além dos roteiros/relatos, gostaria de pensar nos textos produzidos no calor da ação, a partir do repertório de matérias textuais diversas e das dinâmicas relacionais próprias da intervenção. Esses textos, inscritos nas marcas de corpos femininos (também elas uma forma de inscrição) se caracterizariam como escritura cênico-dramatúrgica conjugada? A idéia de projeto, contida nessa noção, parece, de algum modo, contrapor-se ao fluxo da ação que realizamos (e da escritura que dela se depreende) e, nesse sentido, talvez pudéssemos, antes, caracterizá-los como textos escriturais. Para Barthes, são características do texto escritural: amparo num pensamento que não nega a história, mas está além da historicidade; destruições gramaticais de ordem sintática e morfológica (BARTHES, 2006: 13); (re)construções que provocam instabilidade normativa no seio da estrutura escritural, a possibilidade da “perda do sujeito em gozo, a subversão na e pela linguagem”(BARTHES, 1996: 52); re-escritura ou restauração perpétua do texto; a ausência da narrativa linear, fixa, preocupada em explicar uma história com início meio e fim; um prazer ou gozo na leitura que pode ser atópico (BARTHES, 1996: 35), ou seja, não pode ser fixado por nenhuma mentalidade.

Por que a prancha escova progressiva inteligente jeans da moda o roxo bata pode. Por que o sexo forçado marido namorado um tapinha não dói. Homem faz sexo mulher faz amor lipoaspiração drenagem linfática. Tintura. Depilação epilação hidratação cauterização ballayage plástica botox silicone.
Mulher. Uma obra em construção. Quem é a obra de quem? Não é possível explicar, é necessário construir. Desculpe o transtorno. Estamos trabalhando para você.
Filé. Delícia. Gostosa. Carne de primeira. Gatinha. Cachorra. Cadela. Vaca jaca galinha piranha. Mulher melancia. Mulher da vida. Mulher da zona. Mulher da comédia. Mulher à toa. Mulher. A esposa em relação ao marido. Moça que atingiu a puberdade. Samy. 18 aninhos. Morena gostosa. Safada, sapeca como você gosta. 100% completa. Sexo anal total. 69 gostoso. Foto original sem retoque. Gosto de beijar. Amar. Cuidar. Transar. Mesmo sem vontade. Esquecer. Perdoar. Compreender. Sujeitar. Sacrificar. Esquecer. Esquecer. Embalar. Adestrar. Ensinar. Mesmo sem vontade. Educar. Amamentar. Brincar. Parir. Amar. Limpar. Passar. Jogar no rio. Na privada. Na esquina. Na esquina.
Desculpe o transtorno estamos trabalhando para você. Uma obra em construção. Barbies. Pollys. Princess all globe. Bonecas domesticadas pela TV. Hidratantes. Desodorantes. Perfex. Batom. Antiaderente. Drenagem linfática Jet bronze endermologia com arte é diet light in out enterrada menina de 14 anos encontrada morta e estuprada. Metida. Fodida. Arregaçada. Como você gosta.
Cerveja. Boa. Gostosa. Gelada. Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne .

A partir das questões suscitadas pela investigação em relação ao corpo da mulher – mas também dos objetos do "universo feminino", dos discursos do poder e da polifonia dos cartazes, classificados e notícias que têm nele o seu centro – sua exposição nos espaços públicos da cidade tem se mostrado como acontecimento capaz de provocar olhares e reflexões sobre a construção de uma identidade feminina ainda pautada nos ditames de uma sociedade machista e patriarcal, em que a mulher é colocada como objeto de destruição e consumo.
Ao se instalar objetos e corpos femininos na cidade, também instala-se uma obra em construção. Como esses elementos cartografam o corpo da cidade? Que tatuagens se inscrevem? Como o espectador-transeunte lê as imagens produzidas e se relaciona com elas? O que sobra dessas presenças no espaço: restos, rastros, memórias? E as impressões dos habitantes que participaram da ação? Quanto tempo dura o efeito e as marcas desta ação no corpo da cidade? O que ela provoca?
Segundo Clóvis Domingos – que acompanhou a intervenção realizada em dezembro de 2008, na Praça Sete, e permaneceu no local para registrar o “depois” da ação – quando deixamos rastros de corpos escritos, cria-se uma CENA e os transeuntes tornam-se espectadores para acompanhar o ACONTECIMENTO. Escutam-se as pessoas: "é gente doida, mulheres que não gostam de homem, mulheres chamando atenção". Para ele, quando as atuantes abandonam o espaço, elas deixam uma "escritura da presença" no mesmo e um fórum de discussões se inicia entre as pessoas que leram o texto grafado no chão. Fala-se de tudo: violência, política, corrupção, o que é ser mulher, a covardia dos homens etc. É ele quem diz:

Começo a marcar o tempo e por meia hora a presença escrita no chão causa fatos e conversas. Um debate sobre a violência contra a mulher. Vejo moças vendedoras de ouro debatendo o trabalho com soldados e o melhor, uma moça se torna uma ATUANTE e passa a explicar o que entendeu para eles. Segundo ela, "é preciso ler de baixo para cima..assim se entende o texto. Meu filho, eu sou loira, mas não sou burra..." E na explicação dela, aquela "grafia", quase um objeto escrito, ganha mais VISIBILIDADE e cria interrupções variadas. Todos que param recebem explicações dela sobre o que aconteceu e o que significa tudo aquilo. Ela chega a pisar sobre o texto e fazer daquele "espaço escrito", um espaço cênico atraindo a atenção das pessoas... Depois escuto mulheres relatando que já apanharam de homens e falando da Lei Maria da Penha... O fato é que a obra não cessa de causar reações e debates .

Percebida a potência absoluta da fenda que produzimos entre as margens do sentido, optamos por realizar a ação mais algumas vezes na Praça Sete e em outros espaços públicos da cidade, buscando sempre lugares de fluxo intenso de pedestres (como a Praça da Rodoviária, as saídas de estações do metrô, proximidades da Praça da Estação). As possibilidades múltiplas de interpretação da nossa ação – “é protesto?” “Isso é alguma propaganda ou pegadinha”, “Ah, é teatro” – levavam os corpos a permanecerem ali, leitores do acontecimento, em busca de significados que permaneceram ocultos. Pois, se o acontecimento não é da ordem do corpo e o discurso está para além do verbal, que texto (escritura) é este que se imprime no corpo da cidade?
Já em 2009, realizamos mais três intervenções na Praça Sete, em 25 de abril, 16 de maio e 05 de junho. Em seguida, começamos o circuito de viagens com o experimento e realizamos, em julho, os festivais de São José do Rio Preto e de Ouro Preto e Mariana. Em agosto, de retorno a Belo Horizonte, realizamos uma intervenção pela MIP2, novamente na Praça Sete e uma segunda, em setembro, na Praça da Estação. Em novembro, partimos para o Recife.
Uma semana em Recife, realizando Baby Dolls pelas regionais da cidade e experimentando, pela primeira vez, realizar o workshop “como se fabrica uma mulher?” exclusivamente para mulheres e com a participação de Joyce e Erica: pela primeira vez friccionando nossos materiais também no resguardo de uma sala.
Em Pernambuco, de janeiro a outubro deste ano, 291 mulheres foram mortas. 95% dos seus agressores foram homens, sendo 70% companheiros ou ex-companheiros, maridos ou ex-maridos, noivos, namorados. 70% destas mulheres foram mortas por homens que diziam amá-las. Pernambuco é, hoje, um dos estados nos quais mais se mata mulheres no Brasil. No Recife, embora haja 100 mil mulheres a mais que homens, temos a impressão de predominância masculina. As mulheres, não as vemos tanto pelas ruas. Não as vemos tanto pelos bares, desacompanhadas.
Sandra, atriz gaúcha que há seis meses mora em Recife e que foi uma das participantes do workshop, levou, no segundo dia, um cinzeiro e uma lata de cerveja entre os objetos do “universo feminino” que escolheu para realizar o trabalho conosco. Ela relatou que, ao sair do nosso trabalho no dia anterior, resolveu entrar num bar, sozinha, pra tomar uma cerveja e fumar um cigarrro. Era a única mulher do lugar. Uma estrangeira, alienígena.
No Recife, a população que transita livremente é a masculina. Apesar disso (e, talvez, em razão disso mesmo), nunca as mulheres foram tão cúmplices de nós. Lá, a realidade é mais dura. Não é possível fingir que está tudo bem, que somos emancipadas e que o feminismo é um movimento arcaico e obsoleto. Em Recife, não é possível ignorar o machismo e fingir que somos donas de nosso próprio corpo e da nossa vontade. No primeiro dia do workshop, quando realizamos a caminhada performática pelo Recife Antigo, Andala (atriz recifense) se postou numa esquina. Do outro lado, ao meu lado, um grupo de homens a olhava e um dizia: “Aquela ali tá querendo homem. Vou arrumar um pra ela”. Outros ameaçavam colocar moedas no “cofrinho” de Erica que, abaixada, registrava tudo. No Recife, a hipocrisia mineira que permite às mulheres de Belo Horizonte achar, no reverso de narciso, que feio é o que é espelho, não tem solo para grassar.
No entanto lá, como em Belo Horizonte, a potência dessas mulheres unidas desarranja, desconstrói, destrói, desordena. Sentimos essa força na Rua da Imperatriz (na primeira intervenção), quando as mulheres do grupo Loucas de Pedra Lilás aplaudiram Joyce ao vê-la arrancar a peruca loira e revelar seus cachos negros. Sentimos sua força em nossa caminhada performática pelo Centro do Recife Antigo e a sentimos no mercado de Casa Amarela, quando alteramos nossos desenhos e relações, fortalecendo nossas imagens e bagunçando os sentidos de quem transitava por lá (pela primeira vez, senti o impulso real e a cumplicidade necessária – o desejo – daquelas pessoas de compartilhar da escrita. Corpos vazios foram preenchidos por outras mãos armadas de giz). Essa mesma força, senti também na intervenção realizada na Praça da Várzea, quando as mulheres avançaram, tomando posse do giz e dos corpos. Potência Performática.
Realizar uma ação interventiva no cotidiano social, com a perspectiva de provocar uma atitude ativa do espectador diante do acontecimento cênico-performativo. Em uma sociedade em que se multiplicam mulheres comida (mulher melancia, mulher jaca, mulher filé, mulher caviar), em que as mulheres, como propriedades e objetos, são cada vez mais mortas, excomungadas e transformadas em bens de consumo, o transeunte/espectador, sem uma resposta clara e um entendimento imediato do que se passa, é obrigado a parar e interagir com a ação que visa destruir os estereótipos que se reproduzem e desorganizar as imagens dadas.
Entendo essa escrita performada, produzida em processo, como fruto de uma dimensão coletiva e ligada intrinsecamente ao acontecimento, à ação concreta e as relações possíveis entre atuantes e transeuntes/espectadores. A ambigüidade, a pluralidade e a subjetividade encontram espaço propício para desenvolverem e, com isso, renovam-se em movimentos em direção a um fim que é, muitas vezes, o próprio texto. Aqui, a escritura renova-se incessantemente.









Referências Bibliográficas
BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1996.
________________. Inéditos, I: teoria. Tradução Ivone Castilho Beneditti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
________________. Inéditos, II: crítica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
________________. O prazer do texto. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006.

CARREIRA, André. Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade. IN: LIMA, Evelyn F. W. (org.). Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 letras, 2008.

DA COSTA FILHO, José. Teatro brasileiro contemporâneo: um estudo da escritura cênico-dramatúrgica atual. 2003. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Instituto de Letras, Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

DA SILVA, Heloisa Marina e BAUMGÄRTEL, Stephan Arnauf. Possíveis processos da escrita teatral contemporânea IN: Revista DAPesquisa, volume 3, número 2 (ago/2008 a jul/2009). CEART/UDESC.

FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. IN: Revista Sala Preta. São Paulo (ECA/USP), 2008.

LEAL, Juliana Helena Gomes. Escrita performática latino-americana contemporânea. Anais do XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, interações, convergências (USP, julho de 2008). Texto disponível em: http://www.abralic.org.br/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/068/JULIANA_LEAL.pdf

RAVETTI, Graciela. Performances escritas: o diáfano e o opaco da experiência. IN: HILDEBRANDO, Antônio, NASCIMENTO, Lyslei e ROJO, Sara (org). O corpo em performance: imagem, texto, palavra. Belo Horizonte: NELAP/FALE/UFMG, 2003.

SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an introduction. New York & London: Routledge, 2006.

TAYLOR, Diana. Encenando La memória socila: Yuyachkani. IN: RAVETTI, Graciela, ARBEX, Márcia (org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: POSLIT/FALE/UFMG, 2002.
Sites visitados:
www.obscenica.blogspot.com
www.obscenica.ning.com