terça-feira, 15 de novembro de 2016

sem temer




amar sem temer  to love without fear
viver sem temer  to live  without fear








amar sem temer
amar sin miedo
loving without fear
viver sem temer
vivir sin miedo
living without fear







   amar sem temer
to   love without fear
   viver sem temer
to   live without fear






amar sem temer
loving without fear
viver sem temer
living without fear

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Espaço do Silêncio: in memoriam

Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são construídas.
Mulher princesa. Mulher rosa. Mulher de cama e mesa. Mulher sobre-mesa. Mulher doce dócil muda. Morta. Mulher, uma obra em construção: Sorriso. Batom Boca Beijo. Depiladores hidratantes sutiãs veja multiuso escova progressiva inteligente. Silicone. Peito. Bunda. Coxa. 100% completa. Como você gosta. Pronta para consumo imediato. Sarada. Turbinada. Preparada. Plastificada. Espancada. Esquartejada. Morta. Jogada pros cachorros. na lagoa. no lixo. Como você gosta?
Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você.
Mulher. Ser humano do sexo feminino capaz de conceber e gerar outros seres humanos e que se distingue do homem por essa característica. A mulher em relação ao marido. Esposa. Casar. Amar e respeitar até que a morte os separe. Cuidar. Limpar. Lavar. Passar. Sujeitar. Sorrir. Seduzir. Servir bem para servir sempre. Agradar. Transar. Mesmo sem vontade. Mesmo sem vontade apanhar. Amar. Compreender. Apanhar. Amar. Perdoar. Apanhar. Amar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Morrer. Mesmo sem vontade.
Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são destruídas. Destruir. Dar cabo de. Aniquilar. Ex-terminar. A cada 90 minutos, uma mulher é assassinada no Brasil. 70% das mulheres mortas no país são vítimas de seus (ex) namorados, noivos, maridos. 10% desses homens são agentes da segurança pública. Amar e proteger.
Conceição de Maria, 43 anos. Morta a socos pelo marido, policial militar reformado. Osailda, 45 anos, morta por envenenamento. O marido segue em liberdade, assim como o assassino de Débora Souza, 20 anos, atendente do Maria Bonita de Ouro Preto. Fernanda Sante Limeira, 35 anos, ex-marido. Ele apontou a arma e atirou 4 vezes, sem que ela pudesse reagir. Em Corinto, cidade em que minha mãe foi sistematicamente espancada pelo meu pai sem que ninguém metesse a colher, Júlia, uma senhora de 80 anos, foi morta pelo marido. Aqui, em Ouro Preto, Amanda Linhares, 17 anos, foi ex-terminada pelo ex-namorado, delegado de polícia da cidade. No Sul, Natália, 16 anos, grávida de 3 meses, foi morta pelo namorado com pelo menos 80 facadas, sem que ela eu você. sem que ninguém reagisse.

sábado, 30 de julho de 2016

sem juízo (um diálogo com lissandra guimarães, galeano, brecht e antônio apolinário)

sem juízo

(No alto da torre, o olho vigia as celas. No quadrado das horas, Ela).

JUIZA – Eu ficaria muito grata se você, antes do início da sessão, me fizesse um pequeno relato sobre o caso.

(Barulho de celular. Alguém fala “alô!”).

ELA – O despertador toca. 06:15 da manhã. Vai começar tudo de novo! Ela abre o olho. Levanta-se. A roupa está pendurada na cadeira. Desde a noite anterior. Estava tudo organizado. A blusa branca. De botões. O sapato preto. Tudo organizado.

JUIZA – Tudo isso está nos autos. Gostaria que detalhasse mais claramente os motivos da ocorrência.

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Alguma coisa aconteceu. Entre as 06:15, quando despertou, e o momento em que devia pegar o metrô. Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela.

JUIZA – Aceita um charuto Brasil?

ELA – Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo daria certo.

JUIZA – Estou disposta a pesar todos os lados da questão. Os fatos. Não histórias!

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. Sempre. Descia do metrô. Atravessava a rua. Tomava um café na lanchonete da esquina. Fumava um cigarro. E batia o cartão. Às oito e ponto. Às 06:30 ela acaba o banho. Coloca a roupa. Passa o batom. Nem bonita nem feia. Secretária. Ela sempre quis ser linda. Ser modelo, atriz. Bailarina.

JUIZA – Isso não consta dos autos.

(Juíza esconde os papéis, livros, dentro da roupa. Eles caem, formando um pedestal sobre o qual ela parece uma estátua da justiça).

JUIZA – Lembre-se que está em um Tribunal de Justiça.

(Ela busca uma bacia e uma jarra com água e os arruma no espaço. Organiza e reorganiza).

ELA – Tudo tem que ser a mesma coisa. Tudo igual. Tudo em seus devidos lugares. Tudo em pratos limpos! Desde a noite anterior.
Eu já disse que ela era frígida?

JUIZA – Então confessa?

ELA – Tudo tem hora e lugar. O seu lugar. Cada coisa em seu lugar. Ela era do tipo frígida.

JUIZA – É fácil dizer isso. Mas eu tenho de pronunciar uma sentença. Então, vamos aos fatos: “Ainda pequena, foi dada de presente. Assim que aprendeu a caminhar. Um dia, sua avó foi visitá-la. Entrou, deu uma tremenda surra na neta e foi embora”. 

ELA (apontando para uma corda) – O que isso tem a ver com a história? Não é a mesma coisa, não era desse jeito! (desalentada) Não tinha a corda... Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela! Ela precisa fumar um cigarro!

JUIZA – Aceita um charuto Brasil?

(Toca o celular. Alguém diz: “Ei, acorda!”).

ELA – Era sem “acorda!”. Não é a mesma coisa! Não tinha acordo. Não é a mesma coisa. Um cigarro. Alguém me dá um cigarro?

JUIZA – De onde ela vai começar dessa vez?

ELA – Do começo. Vou começar do começo. Digo, vai começar. Ela vai começar tudo de novo!

(Som metálico, como de um cano passando em grades. Uma voz anuncia de tempos em tempos: 06:15! À medida que vai se intensificando, intensifica-se o som de barras de ferro).

ELA – Ela acorda sempre um segundo antes do despertador tocar. O despertador toca. 06:15 da manhã. Ela abre o olho. Digo, ele. Ele levanta-se. A roupa está pendurada na cadeira. Desde a noite anterior. Ele gosta de tudo organizado. A blusa branca. De botões. O sapato preto. Tudo organizado.

JUIZA – Para de dizer isso! Você parece uma vitrola!

(o som dos canos e o chamado – “06:15!” – cessam).

JUIZA – Vamos aos fatos.

ELA – Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Digo, ele. Do jeitinho que ele começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo! Tudo vai dar certo! Tudo vai dar certo.

JUIZA – Hoje em dia, não é fácil saber onde está a justiça. Mas não se deixe intimidar. Não tenha medo. Lembre-se que está num tribunal de justiça.

(Juíza começa a enumerar, simultaneamente, os castigos).

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. (Extorsão. Insulto) Ele. Sempre. (Ameaça) Descia do metrô. (Cascudo. Bofetada. Surra.) Ele atravessava a rua. (Açoite) Tomava um café na lanchonete da esquina. (O quarto escuro) E batia o cartão. Ele. (A ducha gelada. O jejum obrigatório) Às oito e ponto. (A comida obrigatória. A proibição de sair).
Às 06:30 ela acaba o banho. Digo, ele. (A proibição de se dizer o que se pensa) Ele coloca a roupa. Ele gosta de vermelho. (A proibição de fazer o que se sente) Ele machucou a boca na quina da cama. Digo, ela.

JUIZA – A humilhação pública. Esses são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida da família.
Os direitos humanos deviam começar em casa.

ELA - Ela machucou a boca na quina da cama. Vermelho. Ela adora passar batom. Ela não é bonita. Mas fica linda de batom.

JUIZA – Para que recebemos nossos salários? (em outro tom, de propaganda) Justiça: um direito de todos!
Mas voltemos aos fatos. Enquanto descia o rebenque, gritava: “Você não está apanhando por causa do que fez. Está apanhando por causa do que vai fazer!”.

ELA - Vermelho. Ela sorri um sorriso machucado. Puta. 

JUIZA – Então você confessa? Você sabe muito bem que se pode insultar alguém sem usar a voz. Basta um gesto.

ELA – Puta.

JUIZA – Não ponha cada palavra minha na balança! Eu sou um magistrado. Estou pronta a examinar minuciosamente todos os aspectos da questão, mas preciso ser informada sobre qual a decisão que atende os interesses mais altos! Eu sofro de hérnia, não posso ter problemas. Tenho família!
                                  
ELA – Ela entra no quarto. Cumprimenta a colega: “Obrigada pelas flores!”. Vai até o banheiro. Senta-se na privada e digita. Um belo texto. (VOZ: Puta! Piranha!).
     Um texto imaginário. (VOZ: Vadia!) Maravilhoso. (VOZ: Vagabunda!) Cheio de palavras que ninguém conhece. (VOZ: Vaca!)
     Volta ao quarto. Cumprimenta a moça do café. As folhas amarelas são requerimentos. As verdes vão para a contabilidade.

JUIZA – Por que me olha assim? Não sou acusada de coisa alguma! Estou disposta a tudo!

ELA – Ele devia ter tomado o metrô. Às 07:30.

JUIZA - Mas disso não consta uma só palavra na sua acusação.

ELA – Ela ainda não entrou na estação. Digo, ele. Ele. Ela está molhada. Ela se levanta. Ele. Ela está nua. Ele. Ele veste a roupa. Ele. Ele.
Que horas são? Que corda é essa, em sua mão?
São 07:30. Ela ainda não pegou o metrô.
Alguém pode me dar um cigarro? Um cigarro?


JUIZA – Como devo julgar? Como devo escolher? Como? Onde está a pasta com a acusação? Preciso dela. Preciso saber de quem é a culpa! Como posso saber? Como?

quarta-feira, 4 de maio de 2016

lente subjetiva

fico pensando onde está a virtude. essa palavra já comprometida em sua etimologia. pois pressupõe-se masculina. se a virtude pressupõe-se do sujeito, do eu, quem sou esse eu? porque há várias vozes que falam aqui dentro. e fico pensando qual delas é meu eu de verdade. contraditórias, algumas julgam as outras. outras lutam muito para se fazer valer. umas eu até tento ajudar mas vejo que fracassam. não serão eu? ou serão justamente eu porque luto para ser? sou eu de fato aquilo que não consigo arrancar de mim?. ou essas são vozes que se cravaram em mim desde muito cedo? será a voz do Pai que fala em mim? seria essa a voz da virtude? aquele pensamento insidioso, sou eu? sou aquela que não quero ser? e que vejo saltar de mim?

terça-feira, 3 de maio de 2016

inevitável insólito intenso iridescente lume luminoso incêndio.
lânguida lenta lâmina lambe língua pele. lenta. lenta. leio.
em meio. mote. morte. mente. monte. montes. proliferam.
proliferam melenas. helenas. marias e outras. 

inevitável insólito intenso iridescente lume luminoso incêndio.
lânguida lenta lâmina lambe língua pele. lenta. lenta. leio.
em meio. mote. morte. mente. monte. montes. proliferam.








inevitável insólito intenso iridescente
lume luminoso incêndio.

lânguida lenta lâmina lambe língua pele.
lenta. lenta. leio.
em meio. mote. morte. mente. monta. montes. muda mundo. 
mudo mar.

muda amar.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

sem juízo I

Como uma mãe pode fazer isso? Dentro dela, o bebê fica ligado por um cordão umbilical. O bebê nasce ligado. Como ela pode jogar fora algo que ainda está dentro dela? Nenhuma mãe tem direito de esquecer que é mãe! Nem as que querem. Mulher: ser humano do sexo feminino capaz de conceber e gerar outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mãe. Ser égua parideira. vaca cadela cachorra gata galinha piu piu piu pintinho! desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Eu só queria que ele calasse piu piu psiu psiu psiu Parto natural ou cesárea? Amamentar até pelo menos os seis meses. Formato par gênero condicional fêmea feminina. Limpar . Amamentar. Trocar. Compreender. Sacrificar. Padecer no Paraíso. Amar acima de tudo. de si mesma. Cuidar. Educar. Onde é que tá a mãe desse menino? Depois que sai de perto da gente, não tem mais garantia. Pode estragar a qualquer momento. Estragar tudo o que a gente fez, todo o sacrifício! E não tem como reclamar no procon. É tudo culpa da mãe! Todo mundo sabe disso. A mãe é culpada de tudo. Se ela escolhe tirar se escolher ter. Se come bem se come mal. Se for diabética, hipertensa, hipocondríaca gorda. se bebe se fuma um cigarrinho. Tinha hora que dava vontade de enfiar de volta no útero... Eu sei que é estranho falar isso. As mães têm medo de dizer as coisas. mas eu não. Minha vida sempre foi dura mesmo eu, eu tenho coragem de falar, e se eu tenho coragem de dizer as coisas, porque que eu não vou ter coragem de falar? o que eu penso.É isso. Tinha hora que eu ficava muito cansada. E só queria enfiar ele de volta no útero. Pra ele me deixar em paz.
Se não queria parir não devia ter aberto as pernas, vadia. Abortista, assassina. Lixo, escória da humanidade. Puta.
Mãe. Lavar . Passar. Embalar. Beijar. Aquecer. Dar de mamar. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Eu só queria que ele psiu psiu psiu calasse que ele psiu psiu psiu dormisse.
trecho de Mãe de Papel, sem juízo I - estudos para um roteiro (improviso de Lissandra Guimarães e dramaturgia de Nina Caetano).

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

AMOLA-SE

No fundo da cena, soava o pregão distante.
Cada vez mais distante, soava no fundo do ouvido:
Amolador! (Dizia amolador e alongava cada vogal.) Amola faca alicate tesoura! Amola-a-dor...
O homem sentado no quarto, na beira da cama, discordava:
Nem precisa amolar a dor, que essa já corta afiada.
O homem perguntava:
De quantas facas preciso pra fatiar seu coração, hein? Pra deixá-lo em farrapo como o meu?
Com qual tesoura alicate punhal fatiar seu amor fingido pra poder comê-lo em pedaços?
Ele sentia o coração ficar quente quente no peito. E a cabeça quente quente. E o sangue ferver. Ele pensava que era amor, mas não era. Era raiva. Pensava que era o brilho cego de paixão. Mas era ódio e faca amolada.
Ela, o corpo estirado no chão, não respondeu. Agora ela sabia do ódio que ele tinha. O ódio que ela, mulher, já pressentia.
Ele insistiu:
Era isso que você queria, não era? Quem mandou me largar? Quem mandou me desprezar, me humilhar? Sou homem, não sou moleque não. Sou homem, você vai aprender.
Ela, o corpo estirado no chão, não respondeu. Parecia birra. Mas não era. Era boca rasgada, peito aberto e 42 facadas. Só por que ela não o amava, não o queria? Morta, ela pensava: o que ela queria mesmo era viver, era não ser obrigada.
Ele insistiu:
Se não vai mais ser minha, não vai ser de mais ninguém.
Ele nem pensou que podia deixar sua luz brilhar e ser muito tranquilo.
Deixar o seu amor viver e ser muito tranquilo.