domingo, 15 de outubro de 2017

amor de rede

Quero contar uma história banal.
Eu não usava essa palavra até conhecer o Caio. Mas agora ela me parecia a mais adequada, assim tão precisa. Resolvi começar pelo fim.
Resolvera cortar o único laço de comunicação que tinham: o facebook.
Que estranho, usei a palavra laço. Agora preciso pensar. Agora preciso saber. Por que essa palavra. O que queria dizer com aquilo. Cortara o laço? Não. Não cortara. Voltemos ao facebook.
Resolvera cortar o único meio de comunicação entre eles: o facebook.
Antes, nunca tinha visto aquele moço mais gordo. E agora ele era alguém que ela mal conhecia. No entanto...
Uma vez tinha dito isso a ele: eu mal te conheço. Naquele dia estava com raiva. Em outro, tinha dito: eu só quero te encontrar na minha casa, na minha cama. Naquele dia estava em pânico.
Ela já tinha tido vários ataques de pânico. O primeiro ocorrera em uma vez – a primeira vez – que tinha marcado com ele em público. Em um bar. Lembrava-se da onda de pânico invadindo seu corpo. O coração batia desesperadamente, a ponto dela enjoar. E ela quis fugir, dar meia volta e ir embora. Mas respirou fundo, deu duas voltas no quarteirão e dirigiu-se ao bar. Agora pensava: devia mesmo ter ido embora naquele dia. Mas é que virara uma boa moça e não dava mais bolo nos rapazes.
(às vezes sentia saudade de quando não se importava nem um pouco em ser gentil).
Mas é que, ao mesmo tempo, ele viera em um momento de ânsia. De anseio pelo novo. Em que ela andava interessada em experimentar fantasias. Em fazer coisas que nunca tinha feito antes.
Seria esse o cara que a levaria a uma casa de swing e faria uma troca de casais, fingindo ser seu marido? Seria com ele que ela finalmente faria um ménage à trois com homens e mulheres e bocas e mãos por seu corpo? Seria com ele que experimentaria ser homem consolo a penetrá-lo?
Claro, ela tinha ido com muita sede ao pote. Tinha sido exigente. Pedira demais.
Logo ele começou a broxar.
Começou a ter medo dela. Dessa mulher virando-o pelo avesso. Metendo-se em suas dobras. Em seu gozo. Exigindo sem pudores. Seu pau sempre duro. Querendo ser metida. Fodida. Chupada. Lambida. Mordida. Ah, mordida...
Corpo orifícios pele. Em um longo exercício noite adentro. Em regime de beijos.
Como chegara nisso até hoje não sabia. Ela mal conhecia aquele rapaz. Na verdade, ela antes não conhecia. Antes, ela tranquila em sua casa. Antes, ela vivendo a sua vida sem sobressaltos.
De novo, uma frase feita. No mínimo, previsível. Saberia até enunciar qual a qualidade de escritora que desavergonhadamente imitava. Mas não faria isso. Não. Manteria a frase e a pose. Continuaria a história.
Vivendo a sua vida sem sobressaltos. E ele chegara assim meio de esguelha, “Como Quem Não Quer Nada”.
Ele a adicionara no facebook. Ela aceitara a “amizade” d´"O Moço Que Fazia As Mesmas Coisas Que Ela". E que era também “O Rapaz Que Curtia Suas Coisas”. E logo eram "Vai Me Ver Me Apresentando". E logo eram "Vim Te Ver".
Dali para a cama fora um pulo. Noites intensas em que ela representava sua entrega. Hoje percebia isso. Criara uma imagem de si. Representara um papel de sim mesma. O de sempre, mais uma vez. Mas isso ela guardava a sete chaves, não mostrava pra ninguém a profundidade de sua máscara. Ela precisava trocar de pele.
O "Rapaz Que Parecia Diferente Dos Outros" porque conversava com ela mesmo nos ataques de pânico, tinha entrado um pouco no seu coração. Então, ela apressara o fim. E tão rápido quanto começou, tudo terminara.

Agora ele não parecia tão diferente dos outros. De fato, parecia bem igual. Só que mais perigoso: era uma espécie de vício, de karma, doença. Que acabou deixando, em seu peito, uma ferpa. E uma certa aversão a olhos verdes.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

de Marias e Risoletas - Espaço do Silêncio em Alagados

Maria da Conceição de Jesus
48 anos, dona de casa, Alagados-Salvador/BA.
Morta por depressão, depois de apanhar muito.
FEMINICIDA (s): ex-marido(s)

Foto de Mi Flick

Esses escritos compõem a última etiqueta fixada em meu lençol no dia 22 de julho, sábado, durante a ação Espaço do Silêncio, realizada numa praça próxima ao Centro Cultural de Alagados, Salvador-BA, como parte das atividades que integraram o URBARTE I Encontro de Arte, Cidade e Teatro do G-PEC. 
No Encontro, participei também, na companhia de Ines Linke, Carlos Alberto Ferreira, Ciane Fernandes e Silvia Miranda, da mesa “Quem/Como tem/viver Direito à Cidade?”, em que discutimos quem tem direito à cidade e formas de pensar a cidade em que queremos viver... mediadas pela atriz (grupo Noz Cegos) Cristina Gonçalves, tratamos, a partir da discussão de ações realizadas, das relações entre espaço urbano e performance e de questões como problemas de acessibilidade e violência. Lembramos que, para nós mulheres, o espaço público é evidentemente ameaçador: em termos estatísticos, afirma-se que cerca de 99,7% das mulheres já foram assediadas em espaço público. Penso então na necessária potência de afirmação desses corpos por meio de táticas de ocupação e intervenção nos espaços urbanos. Nessas ruas em que somos construídas e destruídas diariamente. 
Como não podia deixar de ser, durante a mesa, minha fala foi completamente afetada pela experiência do dia anterior, em Alagados.

No sábado, durante quase 07 horas, fixei em meu branco lençol de casal cerca de 365 cruzes vermelhas e etiquetas, muitas delas preenchidas com nomes de mulheres que tinham sofrido violência no estado da Bahia. Entre elas, Risoleta Araújo Alencar - 30 anos, grávida de 06 meses - que foi morta pelo marido deficiente visual, em Feira de Santana, dois dias antes de minha ação e cujo nome me foi dado enquanto eu preenchia as etiquetas na sala de café da simpática pousada em que fiquei hospedada, numa outra Salvador bem distinta desta onde meu lençol deitara-se.
Durante toda a tarde em que realizei minha ação, muitas das pessoas que por lá passaram lembraram este e outros casos de violência, discutiram as razões dos crimes, espantaram-se com o grau de ódio e crueldade com que foram cometidos, com a pouca (ou muita) idade de suas vítimas... Mulheres se emocionaram diante de lembranças de abusos e agressões sofridas diretamente por elas ou por conhecidas. Muitas pessoas aproximaram-se, curiosas diante das cruzes e do silêncio instaurado por minha boca cerrada. Neste silêncio, ouvi histórias. Em outros momentos, conversei com adolescentes que buscavam entender do que se tratava. Também recebi convite para ir a uma feijoada na ocupação Carlos Marighela, para discutir sobre o tema. Convite de um homem que respeita muito as mulheres, mas prefere não se meter quando presencia outros homens agredindo as companheiras. Ele acha que é meu papel fazer isso.
No fim da tarde, o cheiro de acarajé começou a perturbar meu estômago vazio e alterar meu estado sinestésico.  Resolvi encerrar a ação com uma caminhada pela praça de Alagados, mostrando meu lençol cheio de cruzes às pessoas que estavam por ali, em ajuntamentos movidos pelo afeto ou pela cerveja.
Com a boca ainda cerrada por uma cruz vermelha, aproximei-me das pessoas que estavam bebendo em um bar, consciente de que, para elas, seria talvez desagradável lidar com minha presença. Aproximei-me principalmente das mulheres, com quem busquei trocar olhares. Uma delas, um pouco desconfortável com minha aproximação, perguntou: “que isso aí? O que ce tá querendo?”
Enquanto isso, outra pessoa, que identifiquei como uma jovem mulher, provavelmente lésbica, disse: “eu já entendi. É feminicídio! Olha só, só tem nome de mulher: Sara, Maria, Luciana... Tudo mulher... não é isso? E tudo morta por homem!" E ela arrematou, levantando-se e olhando para as companheiras de bar: "nessas horas eu também sou mulher!"
Diante do meu estranhamento, ele - nessa altura, eu já tinha identificado Dido (fiquei sabendo seu nome depois) como homem trans - completou, apontando as etiquetas: "Olha só: marido, marido, namorado, companheiro, marido, companheiro... e sabe por que? Porque eles dão a primeira metida numa mulher e já acham que são dono. Te dá um tapa e a mulher acha que é brincadeira. Não é brincadeira não. Começa assim. Aliás, começa antes: na hora em que levanta a voz pra você”.
Enquanto circulava de mesa em mesa, Dido falava, apontando pro meu lençol: “Levantou a voz pra você, cai fora. Senão depois vem o tapa, o soco. Não deixa".
Perto de nós, uma garota de uns 9, 10 anos... "Tá vendo, Carol? Tá vendo aqui? Tudo mulher morta! Eles fazem isso porque pagam a conta e acham que mandam em você. Então, não deixa ninguém pagar suas contas. Quem paga sua conta é você, só você. E nada de brincar de bater com namorado. Isso não é brincadeira. Levantou a voz, cai fora!”
Dido olhou pra mim e disse: “Minha vida toda vi minha mãe apanhar de homem”. Então lembrei que, no meu manifesto, eu também falava de minha mãe. Ainda com a cruz na boca, apontei pra ele o trecho em que está escrito em vermelho: “Em Corinto, cidade onde minha mãe foi sistematicamente espancada pelo meu pai sem que ninguém metesse a colher, Júlia, uma senhora de 80 anos, foi morta pelo marido”. Dido leu e me disse: “minha mãe não apanhou só de um não. Apanhei foi de muitos, de todos os homens com quem viveu. E eu apanhava junto. Uma vez, meu padrasto me botou num canto e me costurou tanto que até aprendi a lutar boxe”. E fez o gesto de defesa.
Nesse momento, tive muita vontade de falar com ele e tirei a cruz de minha boca. Na hora em que ia amassá-la, ele segurou minha mão e disse: “Essa cruz é da minha mãe”. Perguntei se queria coloca-la em meu lençol e ele disse que sim. Estendi, abrindo espaço para mais um nome.


Foto: Alice Gramacho

A etiqueta agora está lá, em meu lençol, colocada pelo filho de Maria da Conceição, que fez questão de fazer da cruz que cerrava minha boca, a cruz de sua mãe. Ela está lá, atestando que não se mata mulheres somente com tiros ou facadas. A violência física é o último estágio de um ciclo que se perpetua e se repete, em que se acumulam níveis diversos de violência de gênero: da violência verbal ao feminicídio, passando pela violência psicológica, patrimonial e sexual. Suas sequelas são também diversas: baixa auto-estima, depressão, auto-mutilação e suicídio são algumas delas.
Estima-se que, no Brasil, na última década, os casos de violência contra a mulher cresceram cerca de 45%, sendo que, no caso de feminicídios de mulheres negras, o número aumentou em cerca de 54%. Só em 2014, foram mortas cerca de 4.757 mulheres. Em 2015, os casos de denúncia aumentaram em relação a 2014: foram registradas 76.651 denúncias, ante as 52.957 denúncias registradas em 2014.

Depois de colocar a cruz e de eu fixar o nome da sua mãe na etiqueta, Dido ainda me contou que já tinha batido em namorada. Até que sua mãe o chamou um dia e disse: Eu não quero que você bata na filha dos outros. Se algo acontecesse com você eu não ia gostar.

Dido, antes de se despedir de mim, completou: “minha mãe nunca me dizia nada. Mas isso ela me disse: não bate na filha dos outros... Nunca mais bati.”

domingo, 2 de julho de 2017

minha vagina é um chocolate meio amargo

minha vagina não é doce
e não se derrete fácil
embora seja vulnerável a altas temperaturas.
neste caso, se aquecida,
fica logo molinha
e solta aromas pela casa.
se aquecida,
ela escorre e lambuza
deixando um gosto forte em sua boca.
minha vagina é um chocolate meio amargo
que vai bem com sabores ácidos
e línguas ferinas.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

minha vagina sente


minha vagina sente
espasmos calor frio
calafrios
minha vagina sente(-se)
em arroubos e contrações involuntárias
minha vagina sente o tesão crescer
em descargas elétricas
estremecimentos
minha vagina sente sem querer.
ela se alonga, preguiçosa
ao sentir o dedo em suas bordas
ela geme e grunhe
sente o toque a língua a saliva úmida
ela sente o cheiro de suas axilas
e sorri
minha vagina sente amor
ela sangra
ela escorre e se aprofunda
minha vagina abisma-se em si
invagina-se.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

passeio vermelho: roteiro sensorial II

neste passeio, é preciso seguir as coordenadas
e alcançar o coração
você pode fazê-lo com uma leve massagem
ou suave mordidas
os arrepios na pele vão deixá-la mais disposta.
siga-os então e desça a encosta
aportando nas linhas da ave poema
caminhe com os dedos pelas palavras
lendo-as com a língua
já estará perto das asas da libélula
uma boa ocasião pra usar a pressão dos dentes...
ao fazê-lo, abra a lua das nádegas com as mãos
e mergulhe fundo
alcançando a flor.
.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

passeio vermelho: roteiro sensorial I

aconselho a começar esse passeio
na espiral anéis da perna direita
deixando lá uma leve mordida
Será necessário um salto arriscado
para cair no poema do augusto
que enfeita a panturrilha esquerda
Depois em zigue zague alcançar
o peixe que nada em minha coxa
cuidado:
o choque é capaz de matar bicho maior que você
Mas é possível acalmá-lo
com lambidas suaves
que continuem o trajeto por entre os pelos...
Atravesse suavemente
para alcançar os hibiscos na superfície plana do ventre
e a pergunta: "que posso amar senão o enigma?"
ama-me. mas não se engane, pois
como já dizia a esfinge - metade leão metade mulher:
se não me decifras, eu te devoro.

vermelha

sento-me na cadeira vermelha
e abro as pernas
apoiando o pé na borda colorida.
inclino minha cabeça pra trás
quando sua língua se aproxima
me abro mais
permitindo sua entrada lenta
profunda molhada
a língua beija a ponta atrevida
que estremece e cresce
sob a leve pressão alucinada
dos seus lábios nos meus
só de pensar
enrubesço

lambelíngua

lambe língua lenta
demora-se no monte entumescido
dedos pedem passagem
abrem caminho
lambuzam-se
no ácido caldo
que a língua recolhe
em redemoinho

terça-feira, 15 de novembro de 2016

sem temer




amar sem temer  to love without fear
viver sem temer  to live  without fear








amar sem temer
amar sin miedo
loving without fear
viver sem temer
vivir sin miedo
living without fear







   amar sem temer
to   love without fear
   viver sem temer
to   live without fear






amar sem temer
loving without fear
viver sem temer
living without fear

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Espaço do Silêncio: in memoriam

Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são construídas.
Mulher princesa. Mulher rosa. Mulher de cama e mesa. Mulher sobre-mesa. Mulher doce dócil muda. Morta. Mulher, uma obra em construção: Sorriso. Batom Boca Beijo. Depiladores hidratantes sutiãs veja multiuso escova progressiva inteligente. Silicone. Peito. Bunda. Coxa. 100% completa. Como você gosta. Pronta para consumo imediato. Sarada. Turbinada. Preparada. Plastificada. Espancada. Esquartejada. Morta. Jogada pros cachorros. na lagoa. no lixo. Como você gosta?
Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você.
Mulher. Ser humano do sexo feminino capaz de conceber e gerar outros seres humanos e que se distingue do homem por essa característica. A mulher em relação ao marido. Esposa. Casar. Amar e respeitar até que a morte os separe. Cuidar. Limpar. Lavar. Passar. Sujeitar. Sorrir. Seduzir. Servir bem para servir sempre. Agradar. Transar. Mesmo sem vontade. Mesmo sem vontade apanhar. Amar. Compreender. Apanhar. Amar. Perdoar. Apanhar. Amar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Morrer. Mesmo sem vontade.
Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são destruídas. Destruir. Dar cabo de. Aniquilar. Ex-terminar. A cada 90 minutos, uma mulher é assassinada no Brasil. 70% das mulheres mortas no país são vítimas de seus (ex) namorados, noivos, maridos. 10% desses homens são agentes da segurança pública. Amar e proteger.
Conceição de Maria, 43 anos. Morta a socos pelo marido, policial militar reformado. Osailda, 45 anos, morta por envenenamento. O marido segue em liberdade, assim como o assassino de Débora Souza, 20 anos, atendente do Maria Bonita de Ouro Preto. Fernanda Sante Limeira, 35 anos, ex-marido. Ele apontou a arma e atirou 4 vezes, sem que ela pudesse reagir. Em Corinto, cidade em que minha mãe foi sistematicamente espancada pelo meu pai sem que ninguém metesse a colher, Júlia, uma senhora de 80 anos, foi morta pelo marido. Aqui, em Ouro Preto, Amanda Linhares, 17 anos, foi ex-terminada pelo ex-namorado, delegado de polícia da cidade. No Sul, Natália, 16 anos, grávida de 3 meses, foi morta pelo namorado com pelo menos 80 facadas, sem que ela eu você. sem que ninguém reagisse.

sábado, 30 de julho de 2016

sem juízo (um diálogo com lissandra guimarães, galeano, brecht e antônio apolinário)

sem juízo

(No alto da torre, o olho vigia as celas. No quadrado das horas, Ela).

JUIZA – Eu ficaria muito grata se você, antes do início da sessão, me fizesse um pequeno relato sobre o caso.

(Barulho de celular. Alguém fala “alô!”).

ELA – O despertador toca. 06:15 da manhã. Vai começar tudo de novo! Ela abre o olho. Levanta-se. A roupa está pendurada na cadeira. Desde a noite anterior. Estava tudo organizado. A blusa branca. De botões. O sapato preto. Tudo organizado.

JUIZA – Tudo isso está nos autos. Gostaria que detalhasse mais claramente os motivos da ocorrência.

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Alguma coisa aconteceu. Entre as 06:15, quando despertou, e o momento em que devia pegar o metrô. Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela.

JUIZA – Aceita um charuto Brasil?

ELA – Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo daria certo.

JUIZA – Estou disposta a pesar todos os lados da questão. Os fatos. Não histórias!

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. Sempre. Descia do metrô. Atravessava a rua. Tomava um café na lanchonete da esquina. Fumava um cigarro. E batia o cartão. Às oito e ponto. Às 06:30 ela acaba o banho. Coloca a roupa. Passa o batom. Nem bonita nem feia. Secretária. Ela sempre quis ser linda. Ser modelo, atriz. Bailarina.

JUIZA – Isso não consta dos autos.

(Juíza esconde os papéis, livros, dentro da roupa. Eles caem, formando um pedestal sobre o qual ela parece uma estátua da justiça).

JUIZA – Lembre-se que está em um Tribunal de Justiça.

(Ela busca uma bacia e uma jarra com água e os arruma no espaço. Organiza e reorganiza).

ELA – Tudo tem que ser a mesma coisa. Tudo igual. Tudo em seus devidos lugares. Tudo em pratos limpos! Desde a noite anterior.
Eu já disse que ela era frígida?

JUIZA – Então confessa?

ELA – Tudo tem hora e lugar. O seu lugar. Cada coisa em seu lugar. Ela era do tipo frígida.

JUIZA – É fácil dizer isso. Mas eu tenho de pronunciar uma sentença. Então, vamos aos fatos: “Ainda pequena, foi dada de presente. Assim que aprendeu a caminhar. Um dia, sua avó foi visitá-la. Entrou, deu uma tremenda surra na neta e foi embora”. 

ELA (apontando para uma corda) – O que isso tem a ver com a história? Não é a mesma coisa, não era desse jeito! (desalentada) Não tinha a corda... Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela! Ela precisa fumar um cigarro!

JUIZA – Aceita um charuto Brasil?

(Toca o celular. Alguém diz: “Ei, acorda!”).

ELA – Era sem “acorda!”. Não é a mesma coisa! Não tinha acordo. Não é a mesma coisa. Um cigarro. Alguém me dá um cigarro?

JUIZA – De onde ela vai começar dessa vez?

ELA – Do começo. Vou começar do começo. Digo, vai começar. Ela vai começar tudo de novo!

(Som metálico, como de um cano passando em grades. Uma voz anuncia de tempos em tempos: 06:15! À medida que vai se intensificando, intensifica-se o som de barras de ferro).

ELA – Ela acorda sempre um segundo antes do despertador tocar. O despertador toca. 06:15 da manhã. Ela abre o olho. Digo, ele. Ele levanta-se. A roupa está pendurada na cadeira. Desde a noite anterior. Ele gosta de tudo organizado. A blusa branca. De botões. O sapato preto. Tudo organizado.

JUIZA – Para de dizer isso! Você parece uma vitrola!

(o som dos canos e o chamado – “06:15!” – cessam).

JUIZA – Vamos aos fatos.

ELA – Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Digo, ele. Do jeitinho que ele começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo! Tudo vai dar certo! Tudo vai dar certo.

JUIZA – Hoje em dia, não é fácil saber onde está a justiça. Mas não se deixe intimidar. Não tenha medo. Lembre-se que está num tribunal de justiça.

(Juíza começa a enumerar, simultaneamente, os castigos).

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. (Extorsão. Insulto) Ele. Sempre. (Ameaça) Descia do metrô. (Cascudo. Bofetada. Surra.) Ele atravessava a rua. (Açoite) Tomava um café na lanchonete da esquina. (O quarto escuro) E batia o cartão. Ele. (A ducha gelada. O jejum obrigatório) Às oito e ponto. (A comida obrigatória. A proibição de sair).
Às 06:30 ela acaba o banho. Digo, ele. (A proibição de se dizer o que se pensa) Ele coloca a roupa. Ele gosta de vermelho. (A proibição de fazer o que se sente) Ele machucou a boca na quina da cama. Digo, ela.

JUIZA – A humilhação pública. Esses são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida da família.
Os direitos humanos deviam começar em casa.

ELA - Ela machucou a boca na quina da cama. Vermelho. Ela adora passar batom. Ela não é bonita. Mas fica linda de batom.

JUIZA – Para que recebemos nossos salários? (em outro tom, de propaganda) Justiça: um direito de todos!
Mas voltemos aos fatos. Enquanto descia o rebenque, gritava: “Você não está apanhando por causa do que fez. Está apanhando por causa do que vai fazer!”.

ELA - Vermelho. Ela sorri um sorriso machucado. Puta. 

JUIZA – Então você confessa? Você sabe muito bem que se pode insultar alguém sem usar a voz. Basta um gesto.

ELA – Puta.

JUIZA – Não ponha cada palavra minha na balança! Eu sou um magistrado. Estou pronta a examinar minuciosamente todos os aspectos da questão, mas preciso ser informada sobre qual a decisão que atende os interesses mais altos! Eu sofro de hérnia, não posso ter problemas. Tenho família!
                                  
ELA – Ela entra no quarto. Cumprimenta a colega: “Obrigada pelas flores!”. Vai até o banheiro. Senta-se na privada e digita. Um belo texto. (VOZ: Puta! Piranha!).
     Um texto imaginário. (VOZ: Vadia!) Maravilhoso. (VOZ: Vagabunda!) Cheio de palavras que ninguém conhece. (VOZ: Vaca!)
     Volta ao quarto. Cumprimenta a moça do café. As folhas amarelas são requerimentos. As verdes vão para a contabilidade.

JUIZA – Por que me olha assim? Não sou acusada de coisa alguma! Estou disposta a tudo!

ELA – Ele devia ter tomado o metrô. Às 07:30.

JUIZA - Mas disso não consta uma só palavra na sua acusação.

ELA – Ela ainda não entrou na estação. Digo, ele. Ele. Ela está molhada. Ela se levanta. Ele. Ela está nua. Ele. Ele veste a roupa. Ele. Ele.
Que horas são? Que corda é essa, em sua mão?
São 07:30. Ela ainda não pegou o metrô.
Alguém pode me dar um cigarro? Um cigarro?


JUIZA – Como devo julgar? Como devo escolher? Como? Onde está a pasta com a acusação? Preciso dela. Preciso saber de quem é a culpa! Como posso saber? Como?

quarta-feira, 4 de maio de 2016

lente subjetiva

fico pensando onde está a virtude. essa palavra já comprometida em sua etimologia. pois pressupõe-se masculina. se a virtude pressupõe-se do sujeito, do eu, quem sou esse eu? porque há várias vozes que falam aqui dentro. e fico pensando qual delas é meu eu de verdade. contraditórias, algumas julgam as outras. outras lutam muito para se fazer valer. umas eu até tento ajudar mas vejo que fracassam. não serão eu? ou serão justamente eu porque luto para ser? sou eu de fato aquilo que não consigo arrancar de mim?. ou essas são vozes que se cravaram em mim desde muito cedo? será a voz do Pai que fala em mim? seria essa a voz da virtude? aquele pensamento insidioso, sou eu? sou aquela que não quero ser? e que vejo saltar de mim?

terça-feira, 3 de maio de 2016

inevitável insólito intenso iridescente lume luminoso incêndio.
lânguida lenta lâmina lambe língua pele. lenta. lenta. leio.
em meio. mote. morte. mente. monte. montes. proliferam.
proliferam melenas. helenas. marias e outras. 

inevitável insólito intenso iridescente lume luminoso incêndio.
lânguida lenta lâmina lambe língua pele. lenta. lenta. leio.
em meio. mote. morte. mente. monte. montes. proliferam.








inevitável insólito intenso iridescente
lume luminoso incêndio.

lânguida lenta lâmina lambe língua pele.
lenta. lenta. leio.
em meio. mote. morte. mente. monta. montes. muda mundo. 
mudo mar.

muda amar.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

sem juízo I

Como uma mãe pode fazer isso? Dentro dela, o bebê fica ligado por um cordão umbilical. O bebê nasce ligado. Como ela pode jogar fora algo que ainda está dentro dela? Nenhuma mãe tem direito de esquecer que é mãe! Nem as que querem. Mulher: ser humano do sexo feminino capaz de conceber e gerar outros seres humanos e que se distingue do homem por essas características. Mãe. Ser égua parideira. vaca cadela cachorra gata galinha piu piu piu pintinho! desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Eu só queria que ele calasse piu piu psiu psiu psiu Parto natural ou cesárea? Amamentar até pelo menos os seis meses. Formato par gênero condicional fêmea feminina. Limpar . Amamentar. Trocar. Compreender. Sacrificar. Padecer no Paraíso. Amar acima de tudo. de si mesma. Cuidar. Educar. Onde é que tá a mãe desse menino? Depois que sai de perto da gente, não tem mais garantia. Pode estragar a qualquer momento. Estragar tudo o que a gente fez, todo o sacrifício! E não tem como reclamar no procon. É tudo culpa da mãe! Todo mundo sabe disso. A mãe é culpada de tudo. Se ela escolhe tirar se escolher ter. Se come bem se come mal. Se for diabética, hipertensa, hipocondríaca gorda. se bebe se fuma um cigarrinho. Tinha hora que dava vontade de enfiar de volta no útero... Eu sei que é estranho falar isso. As mães têm medo de dizer as coisas. mas eu não. Minha vida sempre foi dura mesmo eu, eu tenho coragem de falar, e se eu tenho coragem de dizer as coisas, porque que eu não vou ter coragem de falar? o que eu penso.É isso. Tinha hora que eu ficava muito cansada. E só queria enfiar ele de volta no útero. Pra ele me deixar em paz.
Se não queria parir não devia ter aberto as pernas, vadia. Abortista, assassina. Lixo, escória da humanidade. Puta.
Mãe. Lavar . Passar. Embalar. Beijar. Aquecer. Dar de mamar. Ser vaca cadela cachorra gata galinha pintinhos piu piu piu desculpe a exaustão. Uma mãe não se cansa nunca. Eu só queria que ele psiu psiu psiu calasse que ele psiu psiu psiu dormisse.
trecho de Mãe de Papel, sem juízo I - estudos para um roteiro (improviso de Lissandra Guimarães e dramaturgia de Nina Caetano).

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

AMOLA-SE

No fundo da cena, soava o pregão distante.
Cada vez mais distante, soava no fundo do ouvido:
Amolador! (Dizia amolador e alongava cada vogal.) Amola faca alicate tesoura! Amola-a-dor...
O homem sentado no quarto, na beira da cama, discordava:
Nem precisa amolar a dor, que essa já corta afiada.
O homem perguntava:
De quantas facas preciso pra fatiar seu coração, hein? Pra deixá-lo em farrapo como o meu?
Com qual tesoura alicate punhal fatiar seu amor fingido pra poder comê-lo em pedaços?
Ele sentia o coração ficar quente quente no peito. E a cabeça quente quente. E o sangue ferver. Ele pensava que era amor, mas não era. Era raiva. Pensava que era o brilho cego de paixão. Mas era ódio e faca amolada.
Ela, o corpo estirado no chão, não respondeu. Agora ela sabia do ódio que ele tinha. O ódio que ela, mulher, já pressentia.
Ele insistiu:
Era isso que você queria, não era? Quem mandou me largar? Quem mandou me desprezar, me humilhar? Sou homem, não sou moleque não. Sou homem, você vai aprender.
Ela, o corpo estirado no chão, não respondeu. Parecia birra. Mas não era. Era boca rasgada, peito aberto e 42 facadas. Só por que ela não o amava, não o queria? Morta, ela pensava: o que ela queria mesmo era viver, era não ser obrigada.
Ele insistiu:
Se não vai mais ser minha, não vai ser de mais ninguém.
Ele nem pensou que podia deixar sua luz brilhar e ser muito tranquilo.
Deixar o seu amor viver e ser muito tranquilo.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

último

exatamente um ano depois ela reencontrou este homem. para uma despedida.
estranha simbologia das coisas.
exatamente um ano depois do primeiro cigarro juntos. do primeiro beijo. do primeiro gozo.
exatamente um ano depois da primeira noite que dormiram sem dormir.
exatamente um ano depois o último cigarro. o último beijo. o último gozo.
exatamente um ano depois a última noite que dormindo dormiram juntos.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

inunda


saudade da sua boca no meu corpo
da sua língua desenhando fogo
criando rotas
abrindo comportas
pra você entrar


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

69


querendo

você

sua boca

em mim

minha boca

em você

domingo, 21 de dezembro de 2014

testamento de fim de ano.

para meu filho deixo tudo o que tenho, exceto o que dele já é: jeito, pensamento, cara, vontade, inteligência. deixo educação. casa e sonhos não realizados. a gente sonha também pros filhos. deixo esperanças de vida. estas, deixo para trás.
deixo, espero, a lembrança de (bons) dias vividos. de pequenos momentos, das trocas diárias. do colo e do amor muito que senti. deixo todo o meu amor de mãe. (um pouquinho dele deixo pro meu sobrinho amado). 
te deixo, filho, meu amor pela vida. 
para meu filho deixo tudo o que tenho, exceto o que já é de outros. o amor dos amigos. os momentos de desejo. de luta. os frutos do trabalho compartilhado. 
para minha irmã deixo minha admiração eterna. e uma parte grande do meu amor que, engraçado, quanto mais distribuo, mais cresce. 
uma parte desse amor deixo pro meu sobrinho e afilhado querido. deixo, como disse, afeto de mãe.
para ravi-ssant deixo minha muita gratidão. por ter me ensinado que o amor pode mais. e o que pode o amor. por ter me ensinado tanto e tão bem. com intensidade e admiração. com tesão e respeito. com calma, luz e beleza. 
para ella, menina morena, a intensidade da descoberta. pra você, que me mostrou um mundo novo, meu eterno tesão. meu gozo sem fim. minha língua. meus dentes. 
para dijon, deixo meus vinis. deixo a música que me ensinou. o toque na pele. o balanço dos quadris.
para meus companheiros deixo a transgressão sempre viva. a diversão e a comida. a festa e a política. o erótico. para a leoa, em especial, parceria, fé e arte.
para outros, deixo o olho no olho. o riso. a palavra dura e a pele macia.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

coisas que me dão prazer.

línguas me dão prazer.
por favor... sí. un poquito más. así, así...
ah, sim, línguas dão prazer.
ah, mon amour, doucement... doucement, mon chérie
a palavra.
a palavra me dá prazer.
le mot.
le mot chão.
le mot móvel.
la parola. pois "eu só tenho a palavra".
palavra prazer.
palavra paladar.
palavra pele. suor. boca.
a palavra língua.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

coisas que sei fazer

sei rir muito. e dançar. sei gostar de música. de todo tipo. sei gostar de música quase sem preconceito. sei ser curiosa. sei ser sagaz. sei ser boba demais. sei limpar. lavar. passar. cozinhar. e sei desaprender a vontade de fazer tudo isso. sei desaprender sem culpa. sei sentir culpa. sei fazer yakisoba do bom. mas só pros amigos. quase não sei fazer pra namorado. depende muito. depende. sei gostar de café. e de boa comida. sei comer e elogiar. sei pedir pra fazer mais. sei ser conquistada por uma boa comida. sei fazer sexo. sei gostar de fazer sexo. sei pedir pra fazer mais. sei morder. lamber. sei chupar um homem. e uma mulher. sei ter vontade. sei fazer vontade. sei amar. mas raramente. já soube me casar, mas me esqueci. sei ter só um filho. sei ter filho amado. sei ser brava. sei ser dura. sei guardar mágoa e sei ser de lua. sei me apaixonar sempre. mas não sem medo. sei ser tímida. e espalhafatosa. sei entrar em pânico. sei entrar em risco. sei escrever texto na rua. sei ação. sei fazer sem autorização. sei ter problema com autoridade. sei gostar de pessoa. sei gostar de coisa também. até mais do que eu gostaria. sei falar muito. mais do que devia. sei ser excessivamente franca. sei ser indelicada. sei ser cruel. mas não gostar disso. sei gostar de ser debochada. sei gostar sem pudor. sei gostar de ser sem pudor. 
ah, sei gostar disso.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

nua.

ela havia prometido
instigar imaginações.
andaria nua pela casa quarto cozinha
sexo na cama. mesa.
chão. chuveiro.
o olho via curva. seio branco. tatuagem vermelha.
carne. bunda. coxa.
entremeio.
mete, ela disse.
a mão anca. espanca de leve. de leve meneia.
agita.
um mar. verão.
lua cheia.
mas o olho só vê que ela passeia
completamente nua.
completamente não.
ela calça chinela de dedo.

pele

a pele sua. cheira.
a pele gruda. anseia.
a pele nua.
a pele preta.
a pele branca pede.
pede língua.
boca. saliva. 
a pele inteira.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

primavera

pele peito pulsa
espera
espera.
espera
pousar na pele preta a língua.
primavera.

domingo, 19 de outubro de 2014

or-ação

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amem

amém

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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

hai kai II

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eu falo vagina
tu falo vagino
ela vagina fala
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sábado, 27 de setembro de 2014

espaço do silêncio III

Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são construídas.
Mulher princesa. Mulher boneca. Mulher rosa. Doce. Dócil. Mulher muda. Mulher pra usar. Mulher pra casar. Mulher de cama e mesa. Mulher sobremesa. Mulher melancia, jaca, melão. Mulher Filé: "Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne". Mulher da vida. Meretriz. Mulher da rua. Meretriz. Mulher da zona. Meretriz. Mulher à toa. Meretriz. Mulher da comédia. Meretriz. Mulher. Meretriz. Mulher. Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você. 
Mulher, uma obra em construção: Sorriso. Batom Boca Beijo. Hidratante. Sutiã. Escova Progressiva Inteligente. Cabelo Longo. Depilação a laser. Lisinha. Cheirosa. 100% completa. Pronta para consumo imediato. Peito. Bunda. Coxa. A cada ano são feitas 629 mil plásticas no Brasil. Silicone. Drenagem linfática. Jet bronze. Botox. Endermologia com Arte. Lipo-Aspiração mata. Diet. Light. In. Out. Gorda. Feia. Jogada fora. Pros cachorros. Na lagoa. No lixo.
A gente pensa que é mulher e é só fêmea, bichinho de estimação. Princesa. Gatinha. Filé. Gostosa. Cachorra. Galinha. Vaca. Piranha. Engulo tudo sem frescura. Amar. Agradar. Aceitar. Transar. Mesmo sem vontade. Sujeitar. Sorrir. Servir bem para servir sempre. Amar. Apanhar. Compreender. Perdoar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Morrer. Mesmo sem vontade.
Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você.
Todos os dias. Todos os dias, mulheres são destruídas.
A cada 2 segundos, uma boneca Barbie é vendida em alguma parte do mundo. A cada 12 segundos, uma mulher de verdade é violentada. Sthefany, 18 aninhos. Loirinha e sapeca como você gosta. Adoro beijar. Mesmo sem vontade. Sarada. Turbinada. Siliconada. Preparada. Como você gosta. Drogada. Bêbada. Abusada. Estuprada. Envergonhada. Excomungada. Culpada. Culpada. Culpada.
Como você gosta?

Ela tava pedindo. Ela tava merecendo.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

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eu aborto.
tu abortas.
somos todas clandestinas.
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terça-feira, 23 de setembro de 2014

feito tatuagem

como na música, eu queria ficar no teu corpo feito tatuagem, feito cicatriz marcar.
visível.
como posso ter dentro de mim este turbilhão este transtorno transbordamento transformação sem estampa na minha pele?
na verdade, acho que o que eu queria mesmo é que você estivesse no meu corpo feito tatuagem.
porque não é possível uma vida te alterar assim e isso não deixar traço. rastro. marca. cicatriz.
a gente devia ser igual parede de prisão em que se marca os dias.
ou calendário. com os feriados mais importantes sublinhados em vermelho.
eu queria mesmo é que minha pele guardasse a marca de seus dedos.
a trilha de seus lábios língua: cada gozo marcado na pele.
eu queria mesmo que em minha pele estivesse escrito: agora sou outra.
que seu gosto marcasse minha língua como ferro em brasa.
que suas curvas marcassem minhas mãos. aquela planície na qual suavemente pousa a curva de sua bunda.
queria a marca de suas coxas em meus dentes.

domingo, 24 de agosto de 2014





esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.esquecer.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Espaço do silêncio II - ELLA(s): a escrita

Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são construídas.
Mulher princesa. Mulher boneca. mulher dócil muda. mulher rosa. mulher doce. Mulher sobremesa. Mulher de cama e mesa. Mulher para desfrute. Mulher melancia, jaca, melão. Mulher Filé: "Chega de fruta. Homem gosta é de comer carne". Mulher da vida. Meretriz. Mulher à toa. Meretriz. Mulher da rua. Meretriz. Mulher da zona. Meretriz. Mulher. Meretriz. Mulher. Meretriz. Mulher: uma obra em construção.
Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você. Sorriso. Boca Beijo Batom. Depiladores hidratantes sutiãs rolinhos pregadores talheres gleidy sache vassoura escova progressiva inteligente. A cada ano, no Brasil, são feitas 629 mil plásticas. Silicone. Lipo-Aspiração mata. Peito. Bunda. Coxa. Como você gosta. Drenagem linfática. Jet bronze. Botox. Diet. Light. In. Out. A gente pensa que é mulher e é só fêmea, bichinho de estimação. Gatinha. Cachorra, cadela. Vaca, galinha, piranha. Filé. Gostosa. Quente. Pronta para consumo imediato. 100% completa. Mulher. Ser humano do sexo feminino capaz de conceber e gerar outro ser humano e que se distingue do homem por essa característica. Mulher, parcela da humanidade. A mulher em relação ao marido. Esposa. Amar. Casar. Cuidar. Lavar. Passar. Sujeitar. Agradar. Transar. Mesmo sem vontade. Sorrir. Servir bem para servir sempre. Amar. Parir. Padecer. Amar. Sacrificar. Mãe Amar. Amamentar. Limpar. Jogar fora. No rio, na lagoa. Apanhar. Compreender. Perdoar. Esquecer. Esquecer. Esquecer. Apanhar. Apanhar. Morrer. Mesmo sem vontade.
Desculpe o transtorno, estamos trabalhando para você.
Todos os dias. Todos os dias, mulheres são construídas.
A cada 2 segundos, uma boneca Barbie é vendida em alguma parte do mundo. A cada 15 segundos, uma mulher é espancada no Brasil. Samy, 18 aninhos. Loirinha e sapeca como você gosta. Adoro beijar. Mesmo sem vontade. Sarada. Turbinada. Siliconada. Preparada. Espancada. Excomungada. Esquartejada. Jogada pros cachorros. na rodovia. na lagoa. na lixeira. Morta. Como você gosta. Destruir. Matar. Aniquilar. Dar cabo de.
Ex-terminar. Todos os dias, nas ruas da cidade, mulheres são destruídas. 70% das mulheres mortas no país são vítimas de seus namorados, noivos, maridos. Eliza, 24 anos, esquartejada e jogada para os cachorros a mando do ex-amante e pai de seu filho. Leonice, 40 anos, 13 facadas, ex-companheiro. Maria Islaine, 31 anos, ex-marido. Ele apontou a arma para ela e atirou 7 vezes, sem que ela reagisse. Maria de Jesus, 28 anos, 3 tiros, ex-marido. Luciene, 24 anos, 2 tiros, ex-namorado. Polyana, 23 anos, 18 facadas, ex-marido. Eloá, 15 anos, ex-namorado: morta com 1 tiro na cabeça, sem que ninguém reagisse. Janine, 16 anos, grávida de 8 meses, morta pelo namorado com pelo menos 42 facadas, sem que ela eu você. sem que ninguém reagisse.

espaço do silêncio II - ELLA(s): impressões


espaço do silêncio > praça 7
fluxo vertiginoso de pessoas.
estendo o lençol cravado de cruzes vermelhas. isso chama atenção.
a cruz vermelha em minha boca impõe um silêncio sem explicação.
um inventário de mulheres mortas. destruir. aniquilar. dar cabo de. ex-terminar.
um rapaz lê.
uma mulher lê.
sua comoção co-move-me.
e nos encontramos lá. nessa comoção além das palavras (das muitas palavras impressas no papel).
quero me juntar a você, ela diz. não agora.
ofereço minha escrita. meu telefone. meu nome. ela vai me procurar. ela vai me procurar?
espaço do silêncio > praça da estação
bancos. jardins. estátuas. (rastros da ação de outro dia: dançar é uma revolução)
aqui tudo tem forma e sentido.
pessoas atravessam os quadrados.
as palavras rastros soltas pelo espaço compõem um quadro com meu corpo. o seu antônio diz:
bonito isso que você faz. te vi aqui dançando outro dia. um pano branco. era bonito.
eu agradeço e cerro minha boca com a cruz, mas não antes de responder:
essa ação? chamo de espaço do silêncio.
(apesar de achar que, às vezes, o texto no papel fala demais).

quarta-feira, 2 de abril de 2014

muso

o bom do muso
  é ele ser muso
          sem querer
  é ele ser muso
          sem saber

desejo

desejo o dia em que
    nossos corpos nus
                        a sós
fiquem
                 entrelaçados
entre estrelas laçados.
         estrelados.
desejo
         espaço entre coração e pele
                   abismo
                    fenda
                    fundo
entra...          fundo            ... pode entrar.

quinta-feira, 6 de março de 2014

manifesto pessoal

EU, NINA CAETANO, DECLARO QUE, A PARTIR DE HOJE, 
MEU CORPO É SOMENTE M(EU).
EU NÃO PERTENÇO A NINGUÉM.
A NINGUÉM NADA DEVO. NEM OBEDIÊNCIA. NEM SATISFAÇÃO.
EU SOU MINHA.
E NÃO DE QUEM QUISER.