Maria da Conceição de Jesus
48 anos, dona de casa, Alagados-Salvador/BA.
Morta por depressão, depois de apanhar muito.
FEMINICIDA (s): ex-marido(s)
Foto de Mi Flick
Esses escritos compõem a última etiqueta fixada em meu
lençol no dia 22 de julho, sábado, durante a ação Espaço do Silêncio, realizada
numa praça próxima ao Centro Cultural de Alagados, Salvador-BA, como parte das
atividades que integraram o URBARTE I Encontro de Arte, Cidade e Teatro do
G-PEC.
No Encontro, participei também, na companhia de Ines Linke, Carlos Alberto Ferreira, Ciane Fernandes e Silvia Miranda, da mesa “Quem/Como tem/viver Direito à
Cidade?”, em que discutimos quem tem direito à cidade e formas de pensar a
cidade em que queremos viver... mediadas pela atriz (grupo Noz Cegos) Cristina Gonçalves, tratamos, a partir da discussão de ações realizadas, das relações entre espaço urbano e performance e de questões como problemas de acessibilidade e violência. Lembramos
que, para nós mulheres, o espaço público é evidentemente ameaçador: em termos
estatísticos, afirma-se que cerca de 99,7% das mulheres já foram assediadas em
espaço público. Penso então na necessária potência de afirmação desses corpos por meio de táticas de ocupação e intervenção nos espaços urbanos. Nessas ruas em que somos construídas e destruídas diariamente.
Como não podia deixar de ser, durante a mesa, minha fala foi completamente afetada
pela experiência do dia anterior, em Alagados.
No sábado, durante quase 07 horas, fixei em meu branco lençol de
casal cerca de 365 cruzes vermelhas e etiquetas, muitas delas preenchidas com
nomes de mulheres que tinham sofrido violência no estado da Bahia. Entre elas, Risoleta
Araújo Alencar - 30 anos, grávida de 06 meses - que foi morta pelo marido deficiente
visual, em Feira de Santana, dois dias antes de minha ação e cujo nome me foi dado enquanto eu preenchia as etiquetas na sala de café da simpática pousada em que fiquei hospedada, numa outra Salvador bem distinta desta onde meu lençol deitara-se.
Durante toda a tarde em que realizei minha ação, muitas das pessoas que por lá
passaram lembraram este e outros casos de violência, discutiram as razões dos crimes, espantaram-se com o grau de ódio e crueldade com que foram cometidos, com a pouca (ou muita) idade de suas vítimas... Mulheres se
emocionaram diante de lembranças de abusos e agressões sofridas diretamente por elas ou por conhecidas. Muitas pessoas aproximaram-se,
curiosas diante das cruzes e do silêncio instaurado por minha boca cerrada. Neste
silêncio, ouvi histórias. Em outros momentos, conversei com adolescentes que
buscavam entender do que se tratava. Também recebi convite para ir a uma feijoada na
ocupação Carlos Marighela, para discutir sobre o tema. Convite de um homem que respeita muito as mulheres, mas prefere não se meter quando presencia outros homens agredindo as companheiras. Ele acha que é meu papel fazer isso.
No fim da tarde, o cheiro de acarajé começou a
perturbar meu estômago vazio e alterar meu estado sinestésico. Resolvi encerrar a ação com uma caminhada
pela praça de Alagados, mostrando meu lençol cheio de cruzes às pessoas que
estavam por ali, em ajuntamentos movidos pelo afeto ou pela cerveja.
Com a boca ainda cerrada por uma cruz vermelha, aproximei-me
das pessoas que estavam bebendo em um bar, consciente de que, para elas, seria talvez desagradável lidar com minha presença. Aproximei-me principalmente das
mulheres, com quem busquei trocar olhares. Uma delas, um pouco desconfortável
com minha aproximação, perguntou: “que isso aí? O que ce tá querendo?”
Enquanto isso, outra pessoa, que identifiquei como uma
jovem mulher, provavelmente lésbica, disse: “eu já entendi. É feminicídio! Olha
só, só tem nome de mulher: Sara, Maria, Luciana... Tudo mulher... não é isso? E tudo morta por homem!" E ela arrematou, levantando-se e olhando para as companheiras de bar: "nessas horas eu também sou mulher!"
Diante do meu estranhamento, ele - nessa altura, eu já tinha identificado Dido (fiquei sabendo seu nome depois) como homem trans - completou, apontando as etiquetas: "Olha só: marido, marido, namorado,
companheiro, marido, companheiro... e sabe por que? Porque eles dão a primeira metida
numa mulher e já acham que são dono. Te dá um tapa e a mulher acha que é
brincadeira. Não é brincadeira não. Começa assim. Aliás, começa antes: na hora
em que levanta a voz pra você”.
Enquanto circulava de mesa em mesa, Dido falava, apontando pro meu lençol: “Levantou a voz pra você, cai fora. Senão depois vem o
tapa, o soco. Não deixa".
Perto de nós, uma garota de uns 9, 10 anos... "Tá vendo, Carol? Tá vendo aqui? Tudo mulher morta! Eles fazem
isso porque pagam a conta e acham que mandam em você. Então, não deixa ninguém
pagar suas contas. Quem paga sua conta é você, só você. E nada de brincar de
bater com namorado. Isso não é brincadeira. Levantou a voz, cai fora!”
Dido olhou pra mim e disse: “Minha vida toda vi
minha mãe apanhar de homem”. Então lembrei que, no meu manifesto, eu também falava de minha mãe. Ainda com a cruz na boca, apontei pra ele o trecho em que está
escrito em vermelho: “Em Corinto, cidade onde minha mãe foi sistematicamente
espancada pelo meu pai sem que ninguém metesse a colher, Júlia, uma senhora de
80 anos, foi morta pelo marido”. Dido leu e me disse: “minha mãe não apanhou só de
um não. Apanhei foi de muitos, de todos os homens com quem viveu. E eu apanhava
junto. Uma vez, meu padrasto me botou num canto e me costurou tanto que até
aprendi a lutar boxe”. E fez o gesto de defesa.
Nesse momento, tive muita vontade de falar com ele e
tirei a cruz de minha boca. Na hora em que ia amassá-la, ele segurou minha mão
e disse: “Essa cruz é da minha mãe”. Perguntei se queria coloca-la em meu
lençol e ele disse que sim. Estendi, abrindo espaço para mais um nome.
Foto: Alice Gramacho
A etiqueta agora está lá, em meu lençol, colocada pelo
filho de Maria da Conceição, que fez questão de fazer da cruz que cerrava minha
boca, a cruz de sua mãe. Ela está lá, atestando que não se mata mulheres somente
com tiros ou facadas. A violência física é o último estágio de um ciclo que se
perpetua e se repete, em que se acumulam níveis diversos de violência de gênero:
da violência verbal ao feminicídio, passando pela violência psicológica, patrimonial
e sexual. Suas sequelas são também diversas: baixa auto-estima, depressão, auto-mutilação
e suicídio são algumas delas.
Estima-se que, no Brasil, na última década, os casos
de violência contra a mulher cresceram cerca de 45%, sendo que, no caso de
feminicídios de mulheres negras, o número aumentou em cerca de 54%. Só em 2014,
foram mortas cerca de 4.757 mulheres. Em 2015, os casos de denúncia aumentaram em
relação a 2014: foram registradas 76.651 denúncias, ante as 52.957 denúncias registradas em 2014.
Depois de colocar a cruz e de eu fixar o nome da sua
mãe na etiqueta, Dido ainda me contou que já tinha batido em namorada. Até que
sua mãe o chamou um dia e disse: Eu não quero que você bata na filha dos outros.
Se algo acontecesse com você eu não ia gostar.
Dido, antes de se despedir de mim, completou: “minha
mãe nunca me dizia nada. Mas isso ela me disse: não bate na filha dos outros...
Nunca mais bati.”