sábado, 30 de julho de 2016

sem juízo (um diálogo com lissandra guimarães, galeano, brecht e antônio apolinário)

sem juízo

(No alto da torre, o olho vigia as celas. No quadrado das horas, Ela).

JUIZA – Eu ficaria muito grata se você, antes do início da sessão, me fizesse um pequeno relato sobre o caso.

(Barulho de celular. Alguém fala “alô!”).

ELA – O despertador toca. 06:15 da manhã. Vai começar tudo de novo! Ela abre o olho. Levanta-se. A roupa está pendurada na cadeira. Desde a noite anterior. Estava tudo organizado. A blusa branca. De botões. O sapato preto. Tudo organizado.

JUIZA – Tudo isso está nos autos. Gostaria que detalhasse mais claramente os motivos da ocorrência.

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Alguma coisa aconteceu. Entre as 06:15, quando despertou, e o momento em que devia pegar o metrô. Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela.

JUIZA – Aceita um charuto Brasil?

ELA – Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo daria certo.

JUIZA – Estou disposta a pesar todos os lados da questão. Os fatos. Não histórias!

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. Sempre. Descia do metrô. Atravessava a rua. Tomava um café na lanchonete da esquina. Fumava um cigarro. E batia o cartão. Às oito e ponto. Às 06:30 ela acaba o banho. Coloca a roupa. Passa o batom. Nem bonita nem feia. Secretária. Ela sempre quis ser linda. Ser modelo, atriz. Bailarina.

JUIZA – Isso não consta dos autos.

(Juíza esconde os papéis, livros, dentro da roupa. Eles caem, formando um pedestal sobre o qual ela parece uma estátua da justiça).

JUIZA – Lembre-se que está em um Tribunal de Justiça.

(Ela busca uma bacia e uma jarra com água e os arruma no espaço. Organiza e reorganiza).

ELA – Tudo tem que ser a mesma coisa. Tudo igual. Tudo em seus devidos lugares. Tudo em pratos limpos! Desde a noite anterior.
Eu já disse que ela era frígida?

JUIZA – Então confessa?

ELA – Tudo tem hora e lugar. O seu lugar. Cada coisa em seu lugar. Ela era do tipo frígida.

JUIZA – É fácil dizer isso. Mas eu tenho de pronunciar uma sentença. Então, vamos aos fatos: “Ainda pequena, foi dada de presente. Assim que aprendeu a caminhar. Um dia, sua avó foi visitá-la. Entrou, deu uma tremenda surra na neta e foi embora”. 

ELA (apontando para uma corda) – O que isso tem a ver com a história? Não é a mesma coisa, não era desse jeito! (desalentada) Não tinha a corda... Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela! Ela precisa fumar um cigarro!

JUIZA – Aceita um charuto Brasil?

(Toca o celular. Alguém diz: “Ei, acorda!”).

ELA – Era sem “acorda!”. Não é a mesma coisa! Não tinha acordo. Não é a mesma coisa. Um cigarro. Alguém me dá um cigarro?

JUIZA – De onde ela vai começar dessa vez?

ELA – Do começo. Vou começar do começo. Digo, vai começar. Ela vai começar tudo de novo!

(Som metálico, como de um cano passando em grades. Uma voz anuncia de tempos em tempos: 06:15! À medida que vai se intensificando, intensifica-se o som de barras de ferro).

ELA – Ela acorda sempre um segundo antes do despertador tocar. O despertador toca. 06:15 da manhã. Ela abre o olho. Digo, ele. Ele levanta-se. A roupa está pendurada na cadeira. Desde a noite anterior. Ele gosta de tudo organizado. A blusa branca. De botões. O sapato preto. Tudo organizado.

JUIZA – Para de dizer isso! Você parece uma vitrola!

(o som dos canos e o chamado – “06:15!” – cessam).

JUIZA – Vamos aos fatos.

ELA – Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Digo, ele. Do jeitinho que ele começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo! Tudo vai dar certo! Tudo vai dar certo.

JUIZA – Hoje em dia, não é fácil saber onde está a justiça. Mas não se deixe intimidar. Não tenha medo. Lembre-se que está num tribunal de justiça.

(Juíza começa a enumerar, simultaneamente, os castigos).

ELA – Sempre pegava o metrô às 07:30. (Extorsão. Insulto) Ele. Sempre. (Ameaça) Descia do metrô. (Cascudo. Bofetada. Surra.) Ele atravessava a rua. (Açoite) Tomava um café na lanchonete da esquina. (O quarto escuro) E batia o cartão. Ele. (A ducha gelada. O jejum obrigatório) Às oito e ponto. (A comida obrigatória. A proibição de sair).
Às 06:30 ela acaba o banho. Digo, ele. (A proibição de se dizer o que se pensa) Ele coloca a roupa. Ele gosta de vermelho. (A proibição de fazer o que se sente) Ele machucou a boca na quina da cama. Digo, ela.

JUIZA – A humilhação pública. Esses são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida da família.
Os direitos humanos deviam começar em casa.

ELA - Ela machucou a boca na quina da cama. Vermelho. Ela adora passar batom. Ela não é bonita. Mas fica linda de batom.

JUIZA – Para que recebemos nossos salários? (em outro tom, de propaganda) Justiça: um direito de todos!
Mas voltemos aos fatos. Enquanto descia o rebenque, gritava: “Você não está apanhando por causa do que fez. Está apanhando por causa do que vai fazer!”.

ELA - Vermelho. Ela sorri um sorriso machucado. Puta. 

JUIZA – Então você confessa? Você sabe muito bem que se pode insultar alguém sem usar a voz. Basta um gesto.

ELA – Puta.

JUIZA – Não ponha cada palavra minha na balança! Eu sou um magistrado. Estou pronta a examinar minuciosamente todos os aspectos da questão, mas preciso ser informada sobre qual a decisão que atende os interesses mais altos! Eu sofro de hérnia, não posso ter problemas. Tenho família!
                                  
ELA – Ela entra no quarto. Cumprimenta a colega: “Obrigada pelas flores!”. Vai até o banheiro. Senta-se na privada e digita. Um belo texto. (VOZ: Puta! Piranha!).
     Um texto imaginário. (VOZ: Vadia!) Maravilhoso. (VOZ: Vagabunda!) Cheio de palavras que ninguém conhece. (VOZ: Vaca!)
     Volta ao quarto. Cumprimenta a moça do café. As folhas amarelas são requerimentos. As verdes vão para a contabilidade.

JUIZA – Por que me olha assim? Não sou acusada de coisa alguma! Estou disposta a tudo!

ELA – Ele devia ter tomado o metrô. Às 07:30.

JUIZA - Mas disso não consta uma só palavra na sua acusação.

ELA – Ela ainda não entrou na estação. Digo, ele. Ele. Ela está molhada. Ela se levanta. Ele. Ela está nua. Ele. Ele veste a roupa. Ele. Ele.
Que horas são? Que corda é essa, em sua mão?
São 07:30. Ela ainda não pegou o metrô.
Alguém pode me dar um cigarro? Um cigarro?


JUIZA – Como devo julgar? Como devo escolher? Como? Onde está a pasta com a acusação? Preciso dela. Preciso saber de quem é a culpa! Como posso saber? Como?

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