domingo, 15 de outubro de 2017

amor de rede

Quero contar uma história banal.
Eu não usava essa palavra até conhecer o Caio. Mas agora ela me parecia a mais adequada, assim tão precisa. Resolvi começar pelo fim.
Resolvera cortar o único laço de comunicação que tinham: o facebook.
Que estranho, usei a palavra laço. Agora preciso pensar. Agora preciso saber. Por que essa palavra. O que queria dizer com aquilo. Cortara o laço? Não. Não cortara. Voltemos ao facebook.
Resolvera cortar o único meio de comunicação entre eles: o facebook.
Antes, nunca tinha visto aquele moço mais gordo. E agora ele era alguém que ela mal conhecia. No entanto...
Uma vez tinha dito isso a ele: eu mal te conheço. Naquele dia estava com raiva. Em outro, tinha dito: eu só quero te encontrar na minha casa, na minha cama. Naquele dia estava em pânico.
Ela já tinha tido vários ataques de pânico. O primeiro ocorrera em uma vez – a primeira vez – que tinha marcado com ele em público. Em um bar. Lembrava-se da onda de pânico invadindo seu corpo. O coração batia desesperadamente, a ponto dela enjoar. E ela quis fugir, dar meia volta e ir embora. Mas respirou fundo, deu duas voltas no quarteirão e dirigiu-se ao bar. Agora pensava: devia mesmo ter ido embora naquele dia. Mas é que virara uma boa moça e não dava mais bolo nos rapazes.
(às vezes sentia saudade de quando não se importava nem um pouco em ser gentil).
Mas é que, ao mesmo tempo, ele viera em um momento de ânsia. De anseio pelo novo. Em que ela andava interessada em experimentar fantasias. Em fazer coisas que nunca tinha feito antes.
Seria esse o cara que a levaria a uma casa de swing e faria uma troca de casais, fingindo ser seu marido? Seria com ele que ela finalmente faria um ménage à trois com homens e mulheres e bocas e mãos por seu corpo? Seria com ele que experimentaria ser homem consolo a penetrá-lo?
Claro, ela tinha ido com muita sede ao pote. Tinha sido exigente. Pedira demais.
Logo ele começou a broxar.
Começou a ter medo dela. Dessa mulher virando-o pelo avesso. Metendo-se em suas dobras. Em seu gozo. Exigindo sem pudores. Seu pau sempre duro. Querendo ser metida. Fodida. Chupada. Lambida. Mordida. Ah, mordida...
Corpo orifícios pele. Em um longo exercício noite adentro. Em regime de beijos.
Como chegara nisso até hoje não sabia. Ela mal conhecia aquele rapaz. Na verdade, ela antes não conhecia. Antes, ela tranquila em sua casa. Antes, ela vivendo a sua vida sem sobressaltos.
De novo, uma frase feita. No mínimo, previsível. Saberia até enunciar qual a qualidade de escritora que desavergonhadamente imitava. Mas não faria isso. Não. Manteria a frase e a pose. Continuaria a história.
Vivendo a sua vida sem sobressaltos. E ele chegara assim meio de esguelha, “Como Quem Não Quer Nada”.
Ele a adicionara no facebook. Ela aceitara a “amizade” d´"O Moço Que Fazia As Mesmas Coisas Que Ela". E que era também “O Rapaz Que Curtia Suas Coisas”. E logo eram "Vai Me Ver Me Apresentando". E logo eram "Vim Te Ver".
Dali para a cama fora um pulo. Noites intensas em que ela representava sua entrega. Hoje percebia isso. Criara uma imagem de si. Representara um papel de sim mesma. O de sempre, mais uma vez. Mas isso ela guardava a sete chaves, não mostrava pra ninguém a profundidade de sua máscara. Ela precisava trocar de pele.
O "Rapaz Que Parecia Diferente Dos Outros" porque conversava com ela mesmo nos ataques de pânico, tinha entrado um pouco no seu coração. Então, ela apressara o fim. E tão rápido quanto começou, tudo terminara.

Agora ele não parecia tão diferente dos outros. De fato, parecia bem igual. Só que mais perigoso: era uma espécie de vício, de karma, doença. Que acabou deixando, em seu peito, uma ferpa. E uma certa aversão a olhos verdes.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

de Marias e Risoletas - Espaço do Silêncio em Alagados

Maria da Conceição de Jesus
48 anos, dona de casa, Alagados-Salvador/BA.
Morta por depressão, depois de apanhar muito.
FEMINICIDA (s): ex-marido(s)

Foto de Mi Flick

Esses escritos compõem a última etiqueta fixada em meu lençol no dia 22 de julho, sábado, durante a ação Espaço do Silêncio, realizada numa praça próxima ao Centro Cultural de Alagados, Salvador-BA, como parte das atividades que integraram o URBARTE I Encontro de Arte, Cidade e Teatro do G-PEC. 
No Encontro, participei também, na companhia de Ines Linke, Carlos Alberto Ferreira, Ciane Fernandes e Silvia Miranda, da mesa “Quem/Como tem/viver Direito à Cidade?”, em que discutimos quem tem direito à cidade e formas de pensar a cidade em que queremos viver... mediadas pela atriz (grupo Noz Cegos) Cristina Gonçalves, tratamos, a partir da discussão de ações realizadas, das relações entre espaço urbano e performance e de questões como problemas de acessibilidade e violência. Lembramos que, para nós mulheres, o espaço público é evidentemente ameaçador: em termos estatísticos, afirma-se que cerca de 99,7% das mulheres já foram assediadas em espaço público. Penso então na necessária potência de afirmação desses corpos por meio de táticas de ocupação e intervenção nos espaços urbanos. Nessas ruas em que somos construídas e destruídas diariamente. 
Como não podia deixar de ser, durante a mesa, minha fala foi completamente afetada pela experiência do dia anterior, em Alagados.

No sábado, durante quase 07 horas, fixei em meu branco lençol de casal cerca de 365 cruzes vermelhas e etiquetas, muitas delas preenchidas com nomes de mulheres que tinham sofrido violência no estado da Bahia. Entre elas, Risoleta Araújo Alencar - 30 anos, grávida de 06 meses - que foi morta pelo marido deficiente visual, em Feira de Santana, dois dias antes de minha ação e cujo nome me foi dado enquanto eu preenchia as etiquetas na sala de café da simpática pousada em que fiquei hospedada, numa outra Salvador bem distinta desta onde meu lençol deitara-se.
Durante toda a tarde em que realizei minha ação, muitas das pessoas que por lá passaram lembraram este e outros casos de violência, discutiram as razões dos crimes, espantaram-se com o grau de ódio e crueldade com que foram cometidos, com a pouca (ou muita) idade de suas vítimas... Mulheres se emocionaram diante de lembranças de abusos e agressões sofridas diretamente por elas ou por conhecidas. Muitas pessoas aproximaram-se, curiosas diante das cruzes e do silêncio instaurado por minha boca cerrada. Neste silêncio, ouvi histórias. Em outros momentos, conversei com adolescentes que buscavam entender do que se tratava. Também recebi convite para ir a uma feijoada na ocupação Carlos Marighela, para discutir sobre o tema. Convite de um homem que respeita muito as mulheres, mas prefere não se meter quando presencia outros homens agredindo as companheiras. Ele acha que é meu papel fazer isso.
No fim da tarde, o cheiro de acarajé começou a perturbar meu estômago vazio e alterar meu estado sinestésico.  Resolvi encerrar a ação com uma caminhada pela praça de Alagados, mostrando meu lençol cheio de cruzes às pessoas que estavam por ali, em ajuntamentos movidos pelo afeto ou pela cerveja.
Com a boca ainda cerrada por uma cruz vermelha, aproximei-me das pessoas que estavam bebendo em um bar, consciente de que, para elas, seria talvez desagradável lidar com minha presença. Aproximei-me principalmente das mulheres, com quem busquei trocar olhares. Uma delas, um pouco desconfortável com minha aproximação, perguntou: “que isso aí? O que ce tá querendo?”
Enquanto isso, outra pessoa, que identifiquei como uma jovem mulher, provavelmente lésbica, disse: “eu já entendi. É feminicídio! Olha só, só tem nome de mulher: Sara, Maria, Luciana... Tudo mulher... não é isso? E tudo morta por homem!" E ela arrematou, levantando-se e olhando para as companheiras de bar: "nessas horas eu também sou mulher!"
Diante do meu estranhamento, ele - nessa altura, eu já tinha identificado Dido (fiquei sabendo seu nome depois) como homem trans - completou, apontando as etiquetas: "Olha só: marido, marido, namorado, companheiro, marido, companheiro... e sabe por que? Porque eles dão a primeira metida numa mulher e já acham que são dono. Te dá um tapa e a mulher acha que é brincadeira. Não é brincadeira não. Começa assim. Aliás, começa antes: na hora em que levanta a voz pra você”.
Enquanto circulava de mesa em mesa, Dido falava, apontando pro meu lençol: “Levantou a voz pra você, cai fora. Senão depois vem o tapa, o soco. Não deixa".
Perto de nós, uma garota de uns 9, 10 anos... "Tá vendo, Carol? Tá vendo aqui? Tudo mulher morta! Eles fazem isso porque pagam a conta e acham que mandam em você. Então, não deixa ninguém pagar suas contas. Quem paga sua conta é você, só você. E nada de brincar de bater com namorado. Isso não é brincadeira. Levantou a voz, cai fora!”
Dido olhou pra mim e disse: “Minha vida toda vi minha mãe apanhar de homem”. Então lembrei que, no meu manifesto, eu também falava de minha mãe. Ainda com a cruz na boca, apontei pra ele o trecho em que está escrito em vermelho: “Em Corinto, cidade onde minha mãe foi sistematicamente espancada pelo meu pai sem que ninguém metesse a colher, Júlia, uma senhora de 80 anos, foi morta pelo marido”. Dido leu e me disse: “minha mãe não apanhou só de um não. Apanhei foi de muitos, de todos os homens com quem viveu. E eu apanhava junto. Uma vez, meu padrasto me botou num canto e me costurou tanto que até aprendi a lutar boxe”. E fez o gesto de defesa.
Nesse momento, tive muita vontade de falar com ele e tirei a cruz de minha boca. Na hora em que ia amassá-la, ele segurou minha mão e disse: “Essa cruz é da minha mãe”. Perguntei se queria coloca-la em meu lençol e ele disse que sim. Estendi, abrindo espaço para mais um nome.


Foto: Alice Gramacho

A etiqueta agora está lá, em meu lençol, colocada pelo filho de Maria da Conceição, que fez questão de fazer da cruz que cerrava minha boca, a cruz de sua mãe. Ela está lá, atestando que não se mata mulheres somente com tiros ou facadas. A violência física é o último estágio de um ciclo que se perpetua e se repete, em que se acumulam níveis diversos de violência de gênero: da violência verbal ao feminicídio, passando pela violência psicológica, patrimonial e sexual. Suas sequelas são também diversas: baixa auto-estima, depressão, auto-mutilação e suicídio são algumas delas.
Estima-se que, no Brasil, na última década, os casos de violência contra a mulher cresceram cerca de 45%, sendo que, no caso de feminicídios de mulheres negras, o número aumentou em cerca de 54%. Só em 2014, foram mortas cerca de 4.757 mulheres. Em 2015, os casos de denúncia aumentaram em relação a 2014: foram registradas 76.651 denúncias, ante as 52.957 denúncias registradas em 2014.

Depois de colocar a cruz e de eu fixar o nome da sua mãe na etiqueta, Dido ainda me contou que já tinha batido em namorada. Até que sua mãe o chamou um dia e disse: Eu não quero que você bata na filha dos outros. Se algo acontecesse com você eu não ia gostar.

Dido, antes de se despedir de mim, completou: “minha mãe nunca me dizia nada. Mas isso ela me disse: não bate na filha dos outros... Nunca mais bati.”

domingo, 2 de julho de 2017

minha vagina é um chocolate meio amargo

minha vagina não é doce
e não se derrete fácil
embora seja vulnerável a altas temperaturas.
neste caso, se aquecida,
fica logo molinha
e solta aromas pela casa.
se aquecida,
ela escorre e lambuza
deixando um gosto forte em sua boca.
minha vagina é um chocolate meio amargo
que vai bem com sabores ácidos
e línguas ferinas.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

minha vagina sente


minha vagina sente
espasmos calor frio
calafrios
minha vagina sente(-se)
em arroubos e contrações involuntárias
minha vagina sente o tesão crescer
em descargas elétricas
estremecimentos
minha vagina sente sem querer.
ela se alonga, preguiçosa
ao sentir o dedo em suas bordas
ela geme e grunhe
sente o toque a língua a saliva úmida
ela sente o cheiro de suas axilas
e sorri
minha vagina sente amor
ela sangra
ela escorre e se aprofunda
minha vagina abisma-se em si
invagina-se.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

passeio vermelho: roteiro sensorial II

neste passeio, é preciso seguir as coordenadas
e alcançar o coração
você pode fazê-lo com uma leve massagem
ou suave mordidas
os arrepios na pele vão deixá-la mais disposta.
siga-os então e desça a encosta
aportando nas linhas da ave poema
caminhe com os dedos pelas palavras
lendo-as com a língua
já estará perto das asas da libélula
uma boa ocasião pra usar a pressão dos dentes...
ao fazê-lo, abra a lua das nádegas com as mãos
e mergulhe fundo
alcançando a flor.
.

quarta-feira, 14 de junho de 2017

passeio vermelho: roteiro sensorial I

aconselho a começar esse passeio
na espiral anéis da perna direita
deixando lá uma leve mordida
Será necessário um salto arriscado
para cair no poema do augusto
que enfeita a panturrilha esquerda
Depois em zigue zague alcançar
o peixe que nada em minha coxa
cuidado:
o choque é capaz de matar bicho maior que você
Mas é possível acalmá-lo
com lambidas suaves
que continuem o trajeto por entre os pelos...
Atravesse suavemente
para alcançar os hibiscos na superfície plana do ventre
e a pergunta: "que posso amar senão o enigma?"
ama-me. mas não se engane, pois
como já dizia a esfinge - metade leão metade mulher:
se não me decifras, eu te devoro.

vermelha

sento-me na cadeira vermelha
e abro as pernas
apoiando o pé na borda colorida.
inclino minha cabeça pra trás
quando sua língua se aproxima
me abro mais
permitindo sua entrada lenta
profunda molhada
a língua beija a ponta atrevida
que estremece e cresce
sob a leve pressão alucinada
dos seus lábios nos meus
só de pensar
enrubesço

lambelíngua

lambe língua lenta
demora-se no monte entumescido
dedos pedem passagem
abrem caminho
lambuzam-se
no ácido caldo
que a língua recolhe
em redemoinho