quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Aniversário

Hoje ela faz 40 anos. Mas nem parece. Hoje não há festa nem glamour. Vestida de branco, um carrinho de feira lotado de sacolas, balde, bacia, rodo e apetrechos variados, tamancos e uma capa (véu de noiva?) de supermulher vaca maravilha. Ela parte para a praça. Para a rua. Para o trabalho diário. Não, esse não é o seu trabalho. Ou por outra, é. Mas que trabalho é esse?
Partimos as duas para a rua. Ela armada com seus objetos. Eu, com minhas narrativas e meu olhar que registra sua passagem. Saímos de sua casa, na Floresta, e caminhamos pela avenida, carros passam, até o metrô. No caminho, os homens não se agüentam. A roupa branca, a calcinha sob a transparência... ah, os homens!
Descemos e subimos as escadarias do metrô. Eu caminho a certa distância. Alguém ajudará essa mulher? Um senhor oferece para carregar o carrinho. Cavalheirismos...
Saímos na praça da estação. Ainda é dia. Cinco horas. O trânsito é intenso. De transeuntes. De carros. A supermulher noiva maravilha posa junto à fonte. Repito. Centenas de noiva retratam seus dias de glória assim, felizes em praça pública. Ou parques. Ou shoppings. As noivas e seus noivos objetos posam felizes. Antes que seja tarde.
A mulher noiva vaca maravilha empilha embalagens e mais embalagens plásticas. Distribui bandejas e bandejas de isopor pela praça.
“Você é artista plástica?”, pergunta uma mulher que logo começa a trocar confidências com ela. Irmãs na desgraça, solidárias no conselho. “Mas você vai voltar pra ele? Onde é que ele tá?” “Tá lá, namorando a outra.” E as mulheres continuam insistindo em construir seus castelos sozinhas.
Os guardas perguntam: “o que ela está fazendo, o que é isso? Você está com ela?”. Os guardas têm medo do que foge à ordem. E olham de longe.
Aos poucos, lanço alguns registros dessa passagem sobre o cimento da praça. Um dia, quando pequena, sua mãe a levou a uma exposição de bonecas. Bonecas de porcelana, bonecas de louça. Bonecas de plástico. Bonecas de trapo.
Mais adiante, um rol. Parir. Amar. Cuidar. Limpar. Transar. (mesmo sem vontade).
A mulher de 40 muda de roupa. Muda de hábito, persona. Agora ela é outra e empunha balde e rodo como espada e balança. Sempre me lembrará a estátua da justiça nesse longo tubo de malha cinzento. A mulher justiça posta-se ao lado da árvore solitária e juntas compõem um monumento. Em breve, ela recolherá os objetos. Partiremos em nossa caminhada pela cidade das mortas. Ali ela ficará só o tempo da estátua.
Partimos para a caminhada. Para isso, ela troca novamente o hábito. A gente é aquilo que consome. Mulher bacia, mulher vassoura. É bonito vê-la se preparar. Ela coloca seus apetrechos, recolhe seus objetos. Mulher touca na cabeça e boneca de plástico. Mulher de plástico, meias e conformações. Prepara o carrinho de feira, seu companheiro jurado em frente à fonte. Afinal, a mulher precisa ter onde se apoiar. A mulher está em obras, desculpem o transtorno. Estamos trabalhando para você.
A mulher objetos parte. Dessa vez, ela fala. E muito. Subimos a Praça da Estação em direção à Praça Sete. E ela fala. Só se cala ao deitar-se no chão, modelo vivo de uma mulher morta. E sua fala se materializa escrita. Ela me inspira desvios. Fluxos velozes de giz. As mulheres mortas ficam na Estação e partimos. Na Praça Sete, os quatro cantos. Monumentos animados dessa mulher objeto. Outras mulheres objetos. Corpos mortos na paisagem da cidade. Mulheres bichinhos de estimação. Mulheres bonecas em exposição. Mulheres noivas. Mulheres rol. Registros de nossa passagem, marcas do nosso diálogo.
Agora já é tarde e estamos cansadas da lida. Voltar para casa lar reduto do feminino. Ela se desmonta, pega o seu carrinho companheiro de trabalho. Ela parte. Eu vou embora pensando que esse agosto que nos pariu é prenhe.

Nina Caetano

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