sábado, 27 de junho de 2009

sem juízo (menção honrosa no Prêmio Off Flip 2009)

sem juízo

O despertador toca. 05h15min da manhã. Vai começar tudo de novo. Ela abre o olho. Levanta-se. A roupa pendurada na cadeira. Desde a noite anterior. Tudo organizado. A blusa branca de botões. O sapato preto. Tudo organizado.

Loira. Vinte e oito anos. Nem bonita nem feia. Secretária. Eu gostaria que a senhora me fizesse um pequeno relato sobre o caso.

Sempre pegava o metrô às 06h20min. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Alguma coisa aconteceu. Entre as 05h15min, quando despertou, e o momento em que devia pegar o metrô. Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela. Ela respira fundo, atravessa a rua. Toma um café na lanchonete da esquina e fuma um cigarro.
A lanchonete estava lotada, mas ninguém me via.
Era sempre assim. Era sempre a mesma coisa. Eu estou numa calçada que faz parte de uma rua que faz parte de um quarteirão que faz parte de um bairro que faz parte de uma cidade que faz parte de um estado que faz parte de um país que faz parte do mundo! Eu grito e ninguém me escuta. Eu espero um milagre.

Os fatos. Vamos aos fatos.

Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo daria certo. Sempre pegava o metrô às 06h20min. Sempre. Descia do metrô. Atravessava a rua. Tomava um café na lanchonete da esquina. Fumava um cigarro. E batia o cartão. Às oito horas em ponto.
Eu só estava um pouco atrasada. Sempre pegava o metrô às seis e vinte. Sempre. Mas hoje alguma coisa saiu errada. Às cinco e meia ela terminou o banho. Colocou a roupa. Passou o batom. Adora batom vermelho, mas passou um rosa. Nem bonita nem feia. Secretária. Lera isso em algum lugar? Ela sempre quis ser linda. Modelo. Atriz. Bailarina.Tudo tem que ser a mesma coisa. Tudo igual. Tudo em seus devidos lugares. Tudo em pratos limpos! Desde a noite anterior. Ela respira fundo. Pausa.
Ela tinha saído de casa às seis da manhã como todo dia. Mas hoje ia ser diferente. Tinha que ser diferente, pois mais um dia como aquele iria matá-la.

O que a senhora quer dizer com isso? A senhora confessa?

Ela esperava um milagre. Alguma coisa que entrasse no seu caminho de maneira irremediável. Ela devia pegar o metrô às 06h20min. Fechou a porta, desceu as escadas. Cruzou a esquina.
Ainda estava escuro. Um homem na rua deserta. Seria o príncipe encantado que iria salvá-la? Desviou, sumiu de vista. Gostava de ver a cidade naquela hora. Naquela hora, parecia que tinha outra cidade por baixo da cidade. Uma cidade invisível.
Eu preciso fumar um cigarro. Eu tinha que bater o cartão às oito horas em ponto.

Vamos aos fatos? A senhora saiu às seis horas da manhã.

Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo. Do começo. Vou começar do começo. Digo, ela. Ela vai começar tudo de novo.
Ela acorda sempre um segundo antes do despertador tocar. O despertador toca. Ela abre o olho. A roupa está pendurada na cadeira. Ela gosta de tudo organizado.
Acorda! Acorda!
O que esta corda está fazendo aqui? Não é a mesma coisa! Não tinha a corda... Eu preciso fumar um cigarro. Digo, ela. Ela. Ela precisa fumar um cigarro!
Era sem “acorda!”. Não é a mesma coisa! Não é a mesma coisa. Um cigarro. Alguém me dá um cigarro?

Os fatos! Prossigamos.

Ela esquecia as palavras, se perdia... Desculpe, é o stress. Eu já disse que ela era frígida?

Mas disso não consta uma só palavra na acusação. Como devo julgar?

Tudo tem hora e lugar. O seu lugar. Cada coisa em seu lugar.
Ela era do tipo frígido. Ela já tinha tentado de tudo, até amante. Mas também com ele tudo logo soou programado. As mesmas horas de traição. O mesmo sexo oral anal sempre com ele como nunca fazia com o marido. As sempre mesmas ousadias pequenas.
Ele.
Ele sempre pega o metrô às 06h20min. Ele. Sempre. Desce do metrô. Ele atravessa a rua e toma um café na lanchonete da esquina.
Ela também entra na lanchonete. Ela também tem fome.
Às 05h30min ele acaba o banho, coloca a roupa. Blusa branca, de botão. Sapato preto. Ele gosta do vermelho. Ela vê o batom surgindo na frente dela. Ele adora passar o batom. Ela não é bonita. Mas fica linda de batom vermelho. Ele machucou ela. A boca. Na quina da cama. Digo, ela. Ela machucou a boca na quina da cama. Vermelho. Tem que ser vermelho. Sorri um sorriso machucado. Puta.
Ela entra no escritório. Cumprimenta a colega: “Obrigada pelas flores!”. Vai até o banheiro. Senta-se na privada e digita. Um belo texto. Um texto imaginário. Maravilhoso. Cheio de palavras que ninguém conhece. Vaca. Puta. Puta.
Volta ao escritório. Cumprimenta a moça do café. Servimos bem para servirmos sempre. As folhas amarelas são requerimentos. As verdes vão para a contabilidade.

Mas o que é isso, onde estão os papéis? Não consta nada disso! Vamos aos fatos!

Ela vai começar do jeitinho que ela começou. Sabia que podia fazer de maneira organizada. Tudo vai dar certo. Tudo vai dar certo!

É fácil dizer isso. Mas eu tenho de conduzir um interrogatório. Hoje em dia, não é fácil saber onde está a justiça. Eu já li isso em algum lugar? Vamos aos fatos. Foi um dia normal? A senhora tinha feito suas obrigações?

Até o milagre acontecer ela não podia fazer nada. A não ser comprar uma calcinha de renda vermelha. Tinha visto uma na promoção do dia dos namorados. Torcer pro sexo ser um pouquinho diferente, pois há muito era o mesmo. Nunca mais as mesmas coisas. Lavar. Passar. Amar. Transar. Mesmo sem vontade. Parir. Amar. Amamentar. Aquecer. Esquecer. Amar. Sacrificar. Apanhar. Sujeitar. Compreender. Esquecer. Esquecer. Perdoar.

Afinal de contas, qual foi o crime?

Sua vida não tinha poesia. Ela era invisível. Sempre foi. Ninguém a via, ninguém a escutava. Sempre as mesmas coisas. Aquilo dava um aperto no coração.
Mas hoje não. Hoje, alguma coisa aconteceu. Ela entra no prédio. Elevador panorâmico. Primeiro, segundo, terceiro, Sétimo andar. Cabalístico. Ela pisa o parapeito. Ela espera um milagre. Seu corpo bailarino flutua um momento no ar.
No chão, os papéis espalhados. A meia calça rasgada. Onde está minha estrutura sólida? Onde está o chão sob os meus pés? O que me sustenta? O que eu posso sustentar?
Ela muda. Dócil. Gelada. Como ele gosta.

Onde está a pasta com a acusação? Preciso dela. Preciso saber quem são os acusados. Isso é meu ou li em algum lugar? Como posso saber? Afinal de contas, qual foi o crime?

A gente só devia conhecer o que vive. Eu tinha sonhado com um enterro cheio de gente, flores, choro. Um enterro digno. Ser alguém uma vez na vida. Mas ninguém me vê. Digo, ela.
Ela devia ter tomado o metrô. Às 06h20min. Mas ela ainda não entrou na estação. Ela está molhada. Ela não se levanta. Loira, 28 anos, sem calcinha. Jogada num beco escuro ordinário. Ele veste a roupa. A loira não fala nada. Como ele gosta. Ele. Ele.
Que horas são? Que corda é essa, na sua mão?
São 07h30min. Ela ainda não pegou o metrô. Alguma coisa se quebrou. E quando uma coisa se quebra não há mais conserto. Aquilo está quebrado para sempre.
Alguém pode me dar um cigarro? Um cigarro?